Respondendo ao Filipe sobre a questão do mercado de órgãos de dadores vivos.
Os mercados livres são sem dúvida o mecanismo mais eficiente para distribuir bens e recursos escassos (e todos os bens e recursos são escassos). E, na minha opinião, o bem último que uma economia de mercado deve maximiar é o bem-estar individual.
Partilho da rejeição do Estado paternal que o Filipe frequentemente refere mas existem instâncias em que sistematicamente os seres humanos tomam decisões baseadas em visões enviezadas da realidade. Em particular, as pessoas têm tendência a sobrevalorizar ganhos imediatos e a desvalorizar riscos futuros. Isto assume manifesta relevância no contexto de um mercado de órgãos com dadores vivos. Doar um órgão é sempre uma decisão que comporta riscos imediatos inerentes ao próprio procedimento e riscos futuros decorrentes de uma alteração fisiológica do corpo do dador, riscos estes que, por serem incertos ou assincrónicos são tipicamente subavaliados. Por outro lado, o benefício para o receptor é igualmente incerto devido a uma miríade de complicações associadas a questões de histocompatilidade e de rejeição do transplante. Actualmente existem ainda uma série de situações em que o transplate de órgãos não é admitido, designadamente em casos em que existe uma patologia quer fisiológica quer comportamental que terá como consequência a curto prazo a deterioração do órgão transplantado. No contexto de um mercado de órgãos seria presumivelmente possível adquirir um órgão para prolongar uma vida por apenas alguns meses em detrimento de alguém que poderia usufruir de uma vida perfeitamente normal durante várias décadas.
Para eu aceitar um mercado de órgãos tudo isto teria de ser tido em conta: os riscos actuais e futuros do dador e o benefício em termos de tempo e qualidade de vida para o receptor. Só assim teríamos um gestão eficiente do recurso em questão : tempo de vida são.
Como não conheço mecanismos de mercado para maximizar este recurso conformo-me com o estado actual de coisas. Se caíssemos no erro de achar que o recurso em questão era pura e simplesmente os órgãos então criaríamos um sistema em que os cidadãos ricos do Ocidente teriam uma quase inesgotável fonte de órgãos na massa humana que pulula nos países subdesenvolvidos a preços de saldo -- uma ideia indefensável.
Uma muito melhor ideia seria investir mais na investigação em cultura de tecidos humanos e clonagem terapêutica que eliminaria de uma só vez toda esta problemática. Seria possível cultivar órgãos garantidamente histocompatíveis para cada pessoa.