sábado, março 31, 2007

Da Democracia




Está em curso uma reforma do funcionamento da Assembleia da República. Uma proposta apresentada pelo grupo parlamentar do Partido Socialista apresenta várias recomendações interessantes para melhorar o funcionamento e a imagem do Parlamento, mas algumas questões fundamentais ficam por abordar por saírem fora do âmbito da referida reforma,

Embora a Democracia me pareça a única forma aceitável de constranger a liberdade de cidadãos livres às necessidades do bem geral existem quatro pontos fulcrais que me parecem essenciais para uma democracia funcional:

  • Responsabilização dos deputados: A arquitectura constitucional portuguesa garante um quase absoluto monopólio partidário nos trabalhos parlamentares em que a responsabilidade e o poder de decisão se diluem nas estruturas dos partidos. A noção de disciplina partidária oblitera quase totalmente a necessidade de cada partido ter mais do que um representante no parlamento. Por outro lado, os deputados, apesar de serem eleitos em círculos eleitorais de carácter distrital, representam a nação, o que significa que cada cidadão não tem um representante que deva responsabilizar, mas sim 230, e que não elegeu nenhum em particular. A solução actual nem garante uma total proporcionalidade dos votos (isso só seria obtido com um único círculo nacional), nem um sistema de representação personalizado (que só se obteria com um representante específico para uma dada circunscrição eleitoral). Isto para não falar do princípio um cidadão, um voto que possibilita, em teoria, a eleição de representantes que não traduzem verdadeiramente a expressão de vontade dos cidadãos e que exige sistematicamente o recurso ao voto útil.
  • Vacuidade do debate parlamentar: Todo o debate que importa ocorre ou no seio dos partidos ou nos meios de comunicação social. O debate parlamentar reduz-se quase completamente a uma série de declarações políticas que pouco o nada fazem para mudar a posição dos parlamentares que, no fim de contas, acabam por reiterar a posição do seu partido, eventualmente com algumas concessões que são mais fruto das pressões dos media e dos grupos de interesse do que da bondade dos argumentos dos deputados dos outros partidos.
  • Decisão política versus decisão técnica: Os deputados não são nem têm de ser especialistas nos diversos temas sectorias em que são chamados a decidir. Cabe ao parlamento e, em geral, aos políticos definir estratégias e objectivos políticos e aos técnicos encontrar as soluções mais eficientes para a estratégia e objectivos comissionados. Vários equívocos poderiam ser evitados na vida política portuguesa em que os líderes frequentamente aparecem como especialistas universais se se tivesse uma noção clara das fronteiras da decisão política. Um clara definição dessa fronteira seria também vantajosa para a qualidade da nossa democracia porque os cidadãos conseguem facilmente avaliar uma decisão política mas, por vezes, têm dificuldade em avaliar os méritos de uma decisão técnica. O estabelecimento desta fronteira é particularmente importante porque os pressupostos da decisão política e da decisão técnica são fundamentalmente diferentes. A decisão política consiste numa hierarquização mais ou menos arbitrária de prioridades e de valoração relativa de princípios. A decisão técnica consiste na utilização de métodos rigorosos (embora nunca infalíveis) para determinar a solução mais eficiente para um dado problema e, logo, é um processo intrinsecamente ademocrático (a verdade não é democrática!).
  • Rejeição da ditadura da maioria: Uma sociedade democrática é uma sociedade em que devem poder conviver cidadãos livres em que a sua liberdade só seja limitada pelos constrangimentos dos imperativos do interesse geral devidamente justificados e na medida estritamente necessária. Os órgãos de soberania devem abster-se de impôr visões morais ou mundividências particulares mas devem sim definir a liberdade de todos e maximizar o bem-estar da pluralidade dos cidadãos. Não é evidente como é que um órgão parlamentar (ou qualquer órgão democraticamente eleito) possa garantir que uma democracia não degenere numa ditadura da maioria sofrendo de incontinência legiferante. Devem existir instâncias que permitam fazer este controlo. Nalguns países, instâncias judiciais de cúpula assumiram este papel, em Portugal este controlo só existe muito indirectamente. Estamos reféns da boa-vontade e da qualidade dos nossos deputados. (sei que estão a pensar na magistratura do presidente da república, mas os poderes do presidente da república estão adaptados para garantir o statu quo e não para higienizar a proliferação legislativa já existente que limita inutilmente a liberdade dos cidadãos).

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