sexta-feira, maio 21, 2004

Milagres





A indústria dos milagres move vários milhões de euros por ano em toda a Europa. Astrólogos, Tarólogos e outros Videntes prometem a solução para todos os problemas do quotidiano, fazendo recurso a "sabedorias ancestrais", pouco compreendidas pela actual sociedade. Este alegado desconhecimento não impede, contudo, que muitas sejam as pessoas que recorrem a este tipo de práticas numa tentativa de resolver as suas pequenas tragédias pessoais.

Não é necessário estar muito atento para ver solicitações deste tipo de serviços nos jornais e na televisão. Linhas de valor acrescentado, programas de computador, consultórios especializados.. todos prometem uma eficaz resolução dos problemas a troco de uma quantia em dinheiro que é relativamente modesta quando comparada com o efeito que é antecipado.

Políticos, personagens do jet-set e donas-de-casa, recorrem a este tipo serviços com regularidade e quase que se tornou politicamente incorrecto adoptar um atitude céptica face a estes milagreiros e milagreiras.

Em Portugal, o sensato Código de Publicidade dispõe o seguinte:


Artigo 22.º-B


Produtos e serviços milagrosos


1 – É proibida, sem prejuízo do disposto em legislação especial, a publicidade a bens ou serviços milagrosos.

2 – Considera-se publicidade a bens ou serviços milagrosos, para efeitos do presente diploma, a publicidade que, explorando a ignorância, o medo, a crença ou a superstição dos destinatários, apresente quaisquer bens, produtos, objectos, aparelhos, materiais, substâncias, métodos ou serviços como tendo efeitos específicos automáticos ou garantidos na saúde, bem-estar, sorte ou felicidade dos consumidores ou de terceiros, nomeadamente por permitirem prevenir, diagnosticar, curar ou tratar doenças ou dores, proporcionar vantagens de ordem profissional, económica ou social, bem como alterar as características físicas ou a aparência das pessoas, sem uma objectiva comprovação científica das propriedades, características ou efeitos propagandeados ou sugeridos.

3 - ....

4 - ....

5 - .....».


Apesar de, a meu ver, esta norma ser praticamente letra morta, uma vez que se fosse efectivamente cumprida não veríamos a quantidade de anúncios a linhas de Astrologia e Tarot que vemos na televisão, há casos onde foi efectivamente aplicada. Assim, recentemente, um astrólogo-vidente-cartomante foi condenado ao pagamento de uma sanção de 2000 euros por violação do supracitado artigo do Código de Publicidade. De recurso em recurso, o caso chegou ao Tribunal Constitucional, onde o réu arguiu que a referida norma se constituia como uma limitação inconstitucional ao direito à informação e à liberdade de expressão.

O Tribunal Constitucional indeferiu o recurso, referindo que a própria Constituição da República prevê uma disciplina para a publicidade e que a actual legislação cumpre irrepreensivelmente essa necessidade de regulamentação, não atentando contra os direitos referidos pelo recorrente.

Não posso deixar de me congratular por esta decisão. Que seja, ao menos, na sensatez das suas leis que Portugal tenha algo a ensinar ao resto do Mundo.

segunda-feira, maio 10, 2004



Não tenho quaisquer intenções de me tornar um crítico de televisão, mas há certas coisas que merecem um comentário.

Aquilo que deveria ser uma celebração da beleza feminina, está transformado num exercício cruel de apuramento da próxima rainha das mulheres-objecto.

Um homem que deve ter sido manequim na primeira república, uma tipa com um ego maior que o cérebro, outra saída de um filme da Adam's Family e um borjeço misógeno protagonizam um cobarde espectáculo de achincalhamento de jovens raparigas que têm a ingenuidade de pensar que se podem tornar pessoas melhores com idas ao cabeleireiro.

Da tolerável hipocrisia de declarações de amor pela paz e de solidariedade na luta contra a fome no mundo, involuímos para um espectáculo mediático de exploração da pobreza de espírito. Será delas, talvez, o reino dos céus, mas poupem-nos à terrena contemplação dessa humilhação auto-infligida.

terça-feira, maio 04, 2004

Revisão Constitucional



No jornal Público de hoje podemos encontrar um artigo de opinião do senhor deputado António Pinheiro Torres acerca de uma das alterações ao texto da Lei Fundamental de teor semelhante à declaração de voto que foi oportunamente apresentada durante o período de votações em sede de revisão constitucional.

A alteração a que se refere o senhor deputado diz respeito ao Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República, ao qual foi aditada a proibição de discriminação em função da orientação sexual (termo cuja autoria o senhor deputado atribui às associações de homossexuais, talvez querendo, com isso, dizer que o conceito não existe).

O senhor deputado, apesar de não ter votado contra a alteração, defende uma tese curiosa para se insurgir contra esta reforma do princípio da igualdade.

A tese apresentada tem várias facetas, todas elas apresentadas de uma forma eufemizada, e que convém analisar.

Em primeiro lugar, refere a inutilidade da alteração arguindo que a Constituição já garante abstractamente a proibição de quaisquer formas de discriminação, bem como a igualdade perante a Lei e a mesma dignidade social de todos os cidadãos.

Ora, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado a quaisquer das características enumeradas no número 2 do artigo 13º. Sendo assim, seria, talvez, preferível adoptar uma redacção em que se colocasse em evidência não as razões pelas quais não se pode ser discriminado, mas sim as razões pelas quais se deve ser discriminado, designadamente o mérito, o talento e as virtudes. Em todo o caso, não tem sido essa a tradição e o método das declarações de direitos modernas, em que se pretende dar ênfase à proibição das formas hodiernas de perseguição e discriminação nas quais se inclui, sem sombra de dúvida, a discriminação contra os homossexuais.

O senhor deputado acrescenta ainda que sendo a orientação sexual algo do foro íntimo do indivíduo deve o Estado abster-se de legislar sobre a matéria, especialmente se se tratar de normas constitucionais.

Ao fazer esta afirmação, o senhor deputado incorre num equívoco. Subjacente à visão de que um relacionamento homossexual é algo do foro íntimo está a concepção da homossexualidade como uma mera opção sexual, uma escolha ao mesmo nível do sabor preferido do preservativo ou da posição sexual favorita. Não cabe na mundividência no senhor deputado que existem pessoas que nascem de modo diferente, e para quem os afectos apelam inexoravelmente a pessoas no mesmo sexo. A dimensão emocional do ser humano dificilmente pode ser relegada exclusivamente para o foro íntimo; algo a ser praticado dentro de portas e longe da vista de todos. Todos os dias vivemos os nossos afectos e eles determinam grande parte do nosso quotidiano. Não ocorre ao senhor deputado que seja legítimo a um indivíduo aspirar a que os seus afectos não o prejudiquem na sua vida profissional, nem na sua dignidade social.

Apesar de julgar a alteração inútil, por estar já consagrada implicitamente, o senhor deputado sente necessidade de apontar o dedo às consequências da adopção do novo texto. E, se lermos a declaração de voto que apresentou no parlamento, ficamos a saber que os receios do senhor deputado são de que esta consagração de igualdade legitime, de algum modo, o casamento homossexual ou a adopção por casais homossexuais ou que os "institutos jurídicos de secular formação" fiquem sujeitos à "degradação ética de gerações", por se aprovar esta alteração cedendo a "correntes de opinião, cuja vertigem última distorce a própria natureza humana".

Mais adiante o senhor deputado vaticina eufemisticamente que, ao ceder às pressões do lobby gay (seja isso lá o que for) estaremos a abrir caminho para os mais aberrantes modos de relacionamento (a 3 ou a 4). Faltou ao senhor deputado acrescentar, como fizeram uns tantos seus companheiros de ideias nos Estados Unidos que, se fosse permitido o casamento gay, prontamente apareceriam pessoas a reivindicar a possibilidade de contrair casamento com os seus animais de estimação. Ora, fazer uma afirmação deste género é confessar uma monumental ignorância acerca da natureza humana em geral e, em particular, à natureza do comportamento sexual humano.

É precisamente por existirem pessoas como o senhor deputado António Pinheiro Torres que esta alteração se justifica e se legitima. Não se trata de cumprir as "agendas políticas de associações de homossexuais", mas sim de consagrar constitucionalmente o direito que todos os indivíduos têm de viver a plenitude dos seus afectos sem estarem sujeitos a julgamentos morais redutores que atentam contra o direito fundamental de cada um viver em dignidade.




Vale a pena ser licenciado?


Na edição de segunda-feira do Público aparece uma referência a um estudo realizado por um técnico do Banco de Portugal que, segundo o artigo jornalístico, concluia que os licenciados portugueses ganham, em média, mais 80% do que os seus colegas que frequentaram apenas o ensino secundário. Por conseguinte, seria então absolutamente vantajoso ser detentor de uma licenciatura, apesar das propinas e dos custos de oportunidade.

Este artigo merece vários comentários.

O artigo refere que o estudo foi feito por meio de inquérito a vários trabalhadores por conta de outrém do sector privado e utilizou dados referentes a 1999. A população incluía trabalhadores entre os 20 e os 60 anos. Metade do universo analisado dizia respeito a indivíduos com licenciatura, a outra metade a indivíduos com o ensino secundário.

De seguida proponho um exercício: o que é que há de estranho com este estudo?

1. Os dados dizem respeito a 1999, um período económico muito diverso do actual e em que os custos de frequência do ensino superior público eram manifestamente inferiores aos custos actuais;

2. O estudo deixa de lado alguns grupos importantes:

  • O sector público, que representa mais de 50% da população activa

  • Os trabalhadores por conta própria apenas com o ensino secundário, onde encontramos, porventura, a maior parte dos empresários das pequenas e médias empresas portuguesas, com rendimentos francamente superiores ao trabalhadores por conta de outrém

  • Os trabalhadores por conta própria com licenciatura, onde, admitidamente, deverão verificar-se igualmente maiores rendimentos do que os licenciados a contrato

  • Dependendo da forma como os dados foram recolhidos, podem ter sido deixados de fora igualmente, todos os trabalhadores com um grau de licenciatura e que acabaram por exercer uma actividade diversa do âmbito do seu curso e terão sido igualmente ignorados os recém-licenciados no desemprego (síndrome do trabalhador saudável)


3. Por outro lado, parece estranho que, olhando para um universo de pessoas que mistura recém-licenciados com trabalhadores que se licenciaram há 40 anos se usem esses mesmos dados para concluir da vantagem económica de tirar uma licenciatura no futuro próximo.

4. Aparentemente o estudo não teve em conta os vários gastos acrescidos que muitos alunos têm para frequentar o ensino superior, designadamente alimentação e alojamento, se considerarmos os estudantes deslocados, que poderiam alterar dramaticamente as suas conclusões.

Será então este estudo um verdadeiro desmascarar dos mitos relativos a falta de empregabilidade dos cursos superiores em Portugal?

Em boa justiça, uma resposta definitiva só poder ser dada com uma análise atenta do estudo o que, manifestamente não fiz. Por outro lado, seriam necessários mais dados, designadamente em relação ao sector público e aos trabalhadores por conta própria, para permitir retirar conclusões amplamente sustentadas.

De resto, estão convidados a ler o estudo completo aqui.


segunda-feira, maio 03, 2004

Up-to-Date



Tendo em conta o número de leitores deste blog (que deve precisar de não mais de dois bits para representar), o facto de não haver um post há mais de um mês deverá ter tido um impacto moderado nas já debilitadas expectativas por mais um artigo. Assim, vou escusar-me a apresentar justificações para tão prolongada ausência. Em todo o caso, a falta de assunto não pode ser apontada como uma razão válida. Na realidade, há tanto de que falar que a perspectiva de escrever sobre todos esses assuntos pendentes chega a ser desmotivadora.

Este blog tem tido sempre um tom quase azedo por ter servido, sobretudo, como forma de exteriorizar uma série de frustrações do meu quotidiano, hoje queria fazer algo diferente. Começo por congratular-me pela adesão de 10 novos estados à União Europeia. A Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Hungria, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Malta e Chipre são os novos países da europa comunitária. Houve comemorações um pouco por toda a Europa, especialmente nos novos membros, e foram entregues bandeiras da União a todos os municípios dos países recém-chegados. Esta mera formalidade já deu origem a uma acesa polémica na Polónia, onde se discute ainda se a bandeira da União tem ou não precedência sobre as bandeiras nacional e municipal. O governo polaco apressou-se a dizer que a "bandeira da União Europeia trata-se da bandeira de uma mera organização internacional e, por isso, dever-se-ão seguir as regras estabelecidas para esses casos". Claramente, o espírito (con)federalista ainda não chegou à Polónia.

Ainda a propósito de bandeiras e em linha com a recente identificada necessidade de recuperar o amor-próprio nacional, talvez fosse pertinente analisar a forma como é tratada a bandeira da República Portuguesa. Por cá, a bandeira nacional, por força do decreto-lei 150/87 de 30 de Março, só se desfralda, tipicamente, aos Domingos e Feriados, nos edifícios públicos. Esta norma está sujeita a várias interpretações: a bandeira nacional é elevada a tal nível de respeito e consideração que só pode ser hasteada pouco mais de 52 vezes por ano; temos vergonha ou medo de uma prática ostentativa dos símbolos nacionais; as bandeiras duram mais tempo se forem hasteadas menos vezes. Aqui ao lado, em Espanha, é comum ver a bandeira do Reino (muitas vezes, na versão de 5 panos), permanentemente hasteada em todos os edifícios públicos. É certo que Espanha sofre tensões internas que não existem em Portugal, e que, consequentemente, os símbolos servem propósitos mais extensos do que cá. Mas não seria legítimo interrogarmo-nos se uma presença mais constante dos símbolos nacionais poderia reforçar esta recente militância em prol do orgulho lusitano? Provavelmente, o espectro do fascismo, mesmo que a 30 anos de distância, faz com que não haja ainda condições políticas para que se re-invista no papel dos símbolos nacionais sem preconceitos e sem receios de nacionalismos.

Sexta Revisão Constitucional



A revisão constitucional que foi recentemente discutida e aprovada na Assembleia da República teve um carácter tão minimalista que ninguém deu por ela, tendo sido praticamente relegada para notas de pé-de-página na comunicação social. De notar é, também, que mesmo o site do Parlamento não disponibilizou ainda nem as actas da sessão nem o texto final aprovado. São, provavelmente, sinais dos tempos.. este desinteresse tão apático pela vida da República e por um dos processos mais solenes que o Parlamento pode levar a cabo.

E eis que não pude evitar o azedume do costume. Os males do mundo oprimem-me e esta é a minha catarse.