sexta-feira, maio 11, 2007

A supremacia do direito de propriedade


José vive num mundo onde o direito de propriedade é soberano. Neste mundo não existem excluídos, desprotegidos, analfabetos ou desinformados porque todos os cidadãos vivem numa espécie de nirvana de assertividade e estão, por isso, sempre completamente cientes dos seus direitos enquanto seres pensantes e soberanos e absolutamente informados acerda de todas as condicionantes da sua agência racional baseada sobre os sagrados princípios da liberdade individual.

José é, como não podia deixar de ser, um profissional liberal, trabalhando por avença para várias empresas. Para além disso o José é fumador.

Num belo dia José, longe de casa, está com fome e procura algum estabelecimento onde possa encontrar nutrição. Entra na tasca do Chico. Olha em seu redor e os produtos expostos não lhe oferecem confiança. O balcão está imundo e nem quer imaginar o estado em que estará a cozinha. Por isso José sai e entra noutro restaurante alguns metros à frente. Aqui pôde finalmente disfrutar de uma refeição em condições.

Depois de ter bebido dois copos de vinho e alguns copos de água (o calor tinha-lhe provocado uma sede incontrolável) e depois de ter fumado o seu cigarro de fim de refeição, José sente a bexiga apertada. Procura saber onde é a casa-de-banho, mas esta não existe. O dono do estabelecimento não achou necessário disponibilizar uma para os seus clientes, embora tenha uma para uso pessoal. José insiste que tem de ir à casa-de-banho, mas o dono mostra-se inflexível e refere que está afixado à entrada uma menção dizendo explicitamente que o estabelecimento não dispõe de casa-de-banho.

Um pouco desorientado José paga a sua refeição e sai em busca de um sítio onde possa tomar um café e aliviar a sua bexiga. Após dois quarteirões, José encontra o sítio ideal. Um Café com ar simpático e esplanada. José pede uma bica curta enquanto tenta perceber onde fica a casa de banho. Quando no final pergunta onde fica a casa de banho a resposta atinge-o como um murro na sua bexiga inchada: o uso dos lavabos é reservado aos clientes que tiverem feito um consumo superior a 15 euros. José acha ridículo e pensa que nunca mais há-de voltar àquele sítio. Mas reflecte e decide despender os 15 euros em algo que decididamente não vai consumir, mas poderá assim pôr fim ao seu sofrimento. No entanto, José não se havia prevenido: a sua carteira está vazia e o estabelecimento não aceita pagamento multibanco. José decide ir à procura de uma máquina multibanco. Depois de fazer 3 quarteirões encontra finalmente uma ATM. Os nervos sobem-lhe à cabeça e saca de outro cigarro. Dá uma passa e repara que ao lado está outro Café. Levanta 40 euros, pelo sim, pelo não, e decide que já que tem de consumir, que não irá contribuir para os lucros do outro café com regras tão arbitrárias de utilização dos lavabos. Mas não vá o diabo tecê-las, a primeira coisa que José faz, mesmo antes de entrar neste novo café, é perguntar se dispõem de casa-de-banho e se qualquer cliente a pode frequentar independentemente do consumo. Perante a resposta positiva José respira de alívio e pensa "Eis, finalmente, uma empresa virada para o cliente, que pensa nas suas necessidades e conforto. Certamente terá futuro!" e prepara-se para entrar, até que o empregado o adverte referindo que é proibido fumar no interior, assim como é proibida a entrada a pessoas que cheirem a tabaco: regras da gerência. José indignado afasta-se.

Após caminhar meio sem destino, mas devagar porque a bexiga não permite grandes velocidades, encontra uma árvore e decide aliviar-se mesmo ali. Aquele gesto de micção pública foi, para José, uma afirmação eloquente de liberdade, um grito pela sua soberania enquanto indivíduo.

Alguns dias mais tarde vem uma carta do seguro de saúde pedindo o fornecimento de algumas informações sobre estilo de vida, designadamente o consumo de tabaco, para serem tidos em conta no cálculo do risco e, consequentemente, na sua prestação mensal. José recusa prestar essas informações por considerar que elas dizem respeito apenas à sua vida privada e apesar do contrato (que, de resto, é semelhante aos contratos propostos pelas outras companhias de seguros) ter cláusulas de exclusão relativas a doenças ou tratamentos que se revelem necessários para situações resultantes de estilos de vida ou condições pré-existentes que não tenham sido devidamente comunicadas.

Anos mais tarde José é internado com insuficiência respiratória e, pouco depois, é-lhe detectada uma massa nos pulmões. É cedo para dizer se se trata de tecido neoplásico, mas, atendendo à sua história, é bem provável. O seguro não cobre os cuidados médicos devido à cláusula de exclusão. O seu internamento tem como consequência o cancelamento das avenças que mantinha com as várias empresas. Os custos do tratamento irão rapidamente consumir o dinheiro disponível de José. E, apesar de tudo, teve sorte em encontrar um Hospital que aceitasse doentes fumadores -- já se vem tornando comum aparecerem doentes com seguros de saúde invalidados devido à não-comunicação de consumo de tabaco e que depois se demonstra não terem recursos para pagar a hospitalização e o Estado, esse cruél regulador do direito de propriedade, não permite que um Hospital expulse um doente por falta de pagamento.


quinta-feira, maio 10, 2007

Fumo e Direito de Propriedade


Muito se tem escrito na blogosfera a propósito da alegada violação do direito de propriedade quando se proíbe o fumo num estabelecimento aberto ao público.

Em primeiro lugar, deve distinguir-se o direito de propriedade de um direito de soberania. Não há ofensa ao direito de propriedade por o Estado, no exercício da sua função legislativa, decidir regular certos tipos de comportamento lesivos dos interesses dos utentes de espaços abertos ao público.

De resto, existem vários limites à forma como um proprietário de um espaço aberto ao público pode fazer uso da sua propriedade, mas apenas enquanto esta for usada nessa qualidade. Designadamente, não discriminar nem negar vender produtos ou prestar serviços a pessoas por razão da sua raça, sexo, etc. E não pode ainda, por exemplo, comercializar produtos que manifestamente sejam lesivos para a saúde humana, mesmo que o indique expressamente através de sinaléctica e menção própria. Duvido que alguém advogue o direito de um proprietário vender bolinhos de arroz polvinhados com DDT (mesmo que este facto seja devidamente assinalado), em nome do seu direito de propriedade ou da liberdade dos seus clientes poderem escolher ou não consumir esses produtos. E ninguém o advoga porque o risco de alguém consumir um bolinho de arroz polvilhado com DDT por engano, porque não entende o que é o DDT ou porque, entendendo, não sabe ler ou de outra forma não tomou consciência desse facto não é negligenciável, sobretudo quando compaginado com a evidência de que, quem se quiser matar, pode ir fazê-lo para outro lado qualquer.

Assim, exigimos que estes espaços funcionem em condições adequadas de higiene e de salubridade e que os seus produtos tenham algumas garantias de qualidade.

O senhor proprietário (ou proprietária) pode passar a gozar plenamente da sua propriedade (incluíndo consumir bolinhos de DDT ou manter uma cozinha sem o mínimo de condições de higiene) a partir do momento em que esta deixe de estar aberta ao público, porque no momento em que adquire esse estatuto existem certas regras respeitantes ao espaços públicos que se impõem. (Pela mesma razão, deploro os acontecimentos que ocorreram nos estados unidos há uns anos atrás, em que cidadãos foram expulsos de centros comerciais por vestirem t-shirts com palavras de ordem contra a guerra, precisamente porque estavam num espaço aberto ao público).

Durante demasiado tempo os utentes dos espaços abertos ao público têm-se resignado ao facto de terem de conviver com o fumo, mesmo sabendo que lhes é prejudicial. Por outro lado, não existe um incentivo para que os proprietários proíbam o fumo nos seus estabelecimento uma vez que estarão sempre a abdicar de clientes a favor dos seus concorrentes. Assim, não existem mecanismos de mercado que possam arbitrar esta matéria. A única forma de proteger os interesses e a saúde dos cidadãos é pura e simplesmente proibir esta prática nos locais onde esta é particularmente lesiva, designadamente em locais fechados abertos ao público.

Tivessem os não-fumadores (e, talvez, os fumadores) maior consciência dos malefícios do fumo passivo (e activo) e já se teria feito aprovar uma lei mais cedo.

Outro aspecto que pouco se tem enfatizado é o facto de que nem sempre são os proprietários dos espaços que neles trabalham. Assim, sujeitam-se os trabalhadores, fumadores ou não, à presença do fumo. E o argumento de que os ditos trabalhadores podem sempre procurar trabalho noutro local não colhe porque: a) o trabalhador terá tendência a subavaliar o risco futuro de estar exposto ao fumo face ao benefício imediato de ter um salário ao fim do mês; b) actualmente os espaços abertos ao público dentro do mesmo ramo de actividade (restauração, ou local de diversão nocturna, por exemplo) onde é proibido fumar são escassos ou inexistentes. Por isso trata-se também, para quem não ficou convencido com os argumentos anteriores, de uma questão de higiene e segurança no trabalho.

O fumo e a criança que grita

Não resisto a transcrever este artigo de opinião do DN que pode ser encontrado aqui


CALEM-ME A CRIANCINHA QUE NÃO CONSIGO MASTIGAR


João Miguel Tavares
Jornalista
jmtavares@dn.pt


Estava Miguel Sousa Tavares na TVI a comentar a nova Lei do Tabaco quando da sua boca saltou esta pérola: o fumo nos restaurantes, que o Governo quer limitar, incomoda muitíssimo menos do que o barulho das crianças - e a estas não há quem lhes corte o pio. Que bela comparação. Afinal, o que é uma nuvenzinha de nicotina ao pé de um miúdo de goela aberta? Vai daí, para justificar a fineza do seu raciocínio, Sousa Tavares avançou para uma confissão pessoal: "Tive a sorte de os meus pais só me levarem a um restaurante quando tinha 13 anos." Há umas décadas, era mais ou menos a idade em que o pai levava o menino ao prostíbulo para perder a virgindade. O Miguel teve uma educação moderna - aos 13 anos, levaram-no pela primeira vez a comer fora.

Senti-me tocado e fiz uma revisão de vida. É que eu sou daqueles que levam os filhos aos restaurantes. Mais do que isso. Sou daquela classe que Miguel Sousa Tavares considerou a mais ameaçadora e aberrante: os que levam "até bebés de carrinho!". A minha filha de três anos já infectou estabelecimentos um pouco por todo o país, e o meu filho de 14 meses babou-se por cima de duas ou três toalhas respeitáveis. É certo que eles não pertencem à categoria CSI (Criancinhas Simplesmente Insuportáveis), já que assim de repente não me parece que tenham por hábito exibir a glote cada vez que comem fora - mas, também, quem é que acredita nas palavras de um pai? E depois, há todo aquele vasto campo de imponderáveis: antes de os termos, estamos certos de que vão ser CEE (Crianças Exemplarmente Educadas), mas depois saltam cá para fora, começam a crescer e percebemos com tristeza que vêm munidos de vontade própria, que nem sempre somos capazes de controlar.

O que fazer, então? Mantê-los fechados em casa? Acorrentá-los a uma perna do sofá? É uma hipótese, mas mesmo essa é só para quem pode. Na verdade, do alto da sua burguesia endinheirada, e sem certamente se aperceber disso, Miguel Sousa Tavares produziu o comentário mais snobe do ano. Porque, das duas uma, ou os seus pais estiveram 13 anos sem comer fora, num admirável sacrifício pelo bem-estar do próximo, ou então tinham alguém em casa ou na família para lhes tomar conta dos filhinhos quando saíam para a patuscada. E isso, caro Miguel, não é boa educação - é privilégio de classe. Muita gente leva consigo a prole para um restaurante porque, para além do desejo de estar em família, pura e simplesmente não tem ninguém que cuide dos filhos enquanto palita os dentes. Avós à mão e boas empregadas não calham a todos. A não ser que, em nome do supremo amor às boas maneiras, se faça como os paizinhos da pequena Madeleine: deixá-la em casa a dormir com os irmãos, que é para não incomodar o jantar. |

O regresso...



Mais, aqui

Enciclopédia da vida



Em breve, num browser perto de si: aqui.

quarta-feira, maio 09, 2007

A terra, tal como ela é




O principal argumento único argumento dos Criacionistas é a autoridade inquestionável da Bíblia enquanto registo fidedigno da origem da vida e do Universo rejeitando, assim, todo o corpo teórico da Evolução.

É curioso constatar que, contrariamente ao que seria de esperar, não é fácil encontrar criacionistas a defender a tese de que a Terra é plana, tal como se deduz necessariamente de uma leitura literal da Bíblia.

Do tabaco


Artigo 64.º

(Saúde)


1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.

2. O direito à protecção da saúde é realizado:
[...]

b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.

(Constituição da República Portuguesa -- última revisão)



Embora o estilo paternalista do texto constitucional possa chocar as sensibilidades mais liberais penso que no capítulo da regulação dos locais onde se pode fumar o Estado tem um papel importante.

Em primeiro lugar, ninguém tem de levar com o fumo dos outros quando não tem alterativa, designadamente no local de trabalho. E isto inclui todos as pessoas que trabalham em cafés, restaurantes e discotecas.

O fumo e o consumo do tabaco provocam lesões graves e irreversíveis na saúde das pessoas incluíndo patologias comportamentais resultantes da dependência provocada pelo consumo.

Ninguém, na legislação proposta, está ser impedido de fumar. Simplemente estão a proteger-se os legítimos interesses da maioria da população que não fuma e que se tem, ao longo dos anos, resignado a viver em ambientes impregnados de fumo de tabaco.

E se, apesar de todos os estudos, apesar das mortes horríveis, lentas e dolorosas que podem ser vistas nos hospitais portugueses tendo como causa primária o tabagismo haja quem, reclamando uma decisão consciente e informada, quer continuar a fumar pode fazê-lo, mas sem que os outros tenham de ser vítimas dessa decisão.

Eu, infelizmente, sou fumador.. Um vício que tento combater há já alguns anos. Falta-me força de vontade e confesso ter uma fortíssima dependência. Seria fácil disfarçar esta minha fraqueza sob o argumento de estar a tomar uma decisão consciente e informada de querer continuar a fumar. Lamento dizer que, se assim fosse, eu seria uma pessoa -- e não consigo dizê-lo de forma mais simpática -- estúpida.

Os fumadores podem aproveitar esta lei para tentarem reduzir o seu consumo. Ou, se persistirem na sua decisão "consciente e informada" de continuar a fumar podem aproveitar um fenómeno que ocorre actualmente na Itália, em que as pessoas saem até à porta dos restaurantes para fumar, e acabam por meter conversa umas com as outras -- uma oportunidade de networking que os não-fumadores não têm.

Fia-te na Virgem e não vistas o colete reflector



Partiram de vários pontos do país e vão em peregrinação até ao Santuário Católico de Fátima. Centenas de peregrinos percorrem as estradas portuguesas, mas, não vá o diabo tecê-las e porque a Virgem pode estar distraída com outros afazeres, é sempre bom levar o colete reflector vestido.

domingo, maio 06, 2007

Os perigos de ter amigos imaginários - 12



Be afraid.. be VERY afraid
E continua II, III, IV, V, VI.


Para quem acha que isto é algo que se passa apenas do outro lado do Atlântico, gostaria de dizer que já assisti a pelo menos duas "conferências" do mesmo tipo de elevação científica e intelectual em Lisboa, muito embora o orador fosse menos bem-falante. O que é verdadeiramente pernicioso nestes promotores do obscurantismo é que o seu discurso é superficialmente atraente para um crente ingénuo e as suas habilidades retóricas são impressionantes. Em todo o caso, só uma audiência com um nível proverbial de ignorância pode ouvir estas afirmações sem esboçar um sorriso -- algumas são particularmente ridículas, outras são apenas a manifestação de uma enorme desonestidade intelectual.

Président Sarkozy



Voici le nouveau Président de tous les français. On dirait que j'ai rien à voir avec ces elections sauf que j'habite en France. Si j'aurais pu voter, je ne suis pas sûr si j'aurais voté Sarkozy, mais je crois que je n'aurais pas voté Ségolène non plus. Une nouvelle France commence aujourd'hui. Il faut voir s'elle sera encore accueillante.

sábado, maio 05, 2007

Os perigos de ter amigos imaginários - 11



Um adolescente(?) muito perturbado com uma mente cheia de uma mistura de teorias da conspiração, uma tremenda ignorância da teoria da evolução, uma cândida veneração da Bíblia e com um incontrolável desejo de viver num mundo infestado de demónios e outros amigos imaginários.

Os perigos de ter amigos imaginários - 10



Loucos à solta

Os perigos de ter amigos imaginários - 9



Sem comentários

Os perigos de ter amigos imaginários - 8



"Creation science" nas escolas

Os perigos de ter amigos imaginários - 7



James Randi e Homeopatia

Os perigos de ter amigos imaginários - 6



James Randi e a leitura de auras

Os perigos de ter amigos imaginários - 5



Experiência realizada por James Randi, sobre Astrologia

Os perigos de ter amigos imaginários - 4



James Randi e Richard Dawkins

Os perigos de ter amigos imaginários - 3










Palestra de Richard Dawkins. É bastante longa, mas vale a pena!

Os perigos de ter amigos imaginários - 2



Uma entrevista com Richard Dawkins, autor de The God Delusion

Os perigos de ter amigos imaginários - 1



Um entrevista com Christopher Hitchens, autor the God is not Great

sexta-feira, maio 04, 2007

quarta-feira, abril 25, 2007

A trinta e três anos de distância...

Um pequeno equívoco

Usualmente leio a blogosfera através do Google Reader. Mas ainda há pouco atrevi-me a digitar directamente o endereço do blog Blasfémias julgando que este fosse http://blasfemias.blogspot.com. Aparentemente não :-)

Mercado de Órgãos



Respondendo ao Filipe sobre a questão do mercado de órgãos de dadores vivos.

Os mercados livres são sem dúvida o mecanismo mais eficiente para distribuir bens e recursos escassos (e todos os bens e recursos são escassos). E, na minha opinião, o bem último que uma economia de mercado deve maximiar é o bem-estar individual.

Partilho da rejeição do Estado paternal que o Filipe frequentemente refere mas existem instâncias em que sistematicamente os seres humanos tomam decisões baseadas em visões enviezadas da realidade. Em particular, as pessoas têm tendência a sobrevalorizar ganhos imediatos e a desvalorizar riscos futuros. Isto assume manifesta relevância no contexto de um mercado de órgãos com dadores vivos. Doar um órgão é sempre uma decisão que comporta riscos imediatos inerentes ao próprio procedimento e riscos futuros decorrentes de uma alteração fisiológica do corpo do dador, riscos estes que, por serem incertos ou assincrónicos são tipicamente subavaliados. Por outro lado, o benefício para o receptor é igualmente incerto devido a uma miríade de complicações associadas a questões de histocompatilidade e de rejeição do transplante. Actualmente existem ainda uma série de situações em que o transplate de órgãos não é admitido, designadamente em casos em que existe uma patologia quer fisiológica quer comportamental que terá como consequência a curto prazo a deterioração do órgão transplantado. No contexto de um mercado de órgãos seria presumivelmente possível adquirir um órgão para prolongar uma vida por apenas alguns meses em detrimento de alguém que poderia usufruir de uma vida perfeitamente normal durante várias décadas.

Para eu aceitar um mercado de órgãos tudo isto teria de ser tido em conta: os riscos actuais e futuros do dador e o benefício em termos de tempo e qualidade de vida para o receptor. Só assim teríamos um gestão eficiente do recurso em questão : tempo de vida são.

Como não conheço mecanismos de mercado para maximizar este recurso conformo-me com o estado actual de coisas. Se caíssemos no erro de achar que o recurso em questão era pura e simplesmente os órgãos então criaríamos um sistema em que os cidadãos ricos do Ocidente teriam uma quase inesgotável fonte de órgãos na massa humana que pulula nos países subdesenvolvidos a preços de saldo -- uma ideia indefensável.

Uma muito melhor ideia seria investir mais na investigação em cultura de tecidos humanos e clonagem terapêutica que eliminaria de uma só vez toda esta problemática. Seria possível cultivar órgãos garantidamente histocompatíveis para cada pessoa.

Terá o sido o mundo criado em 7 dias?

segunda-feira, abril 23, 2007

Censos da Internet

Dois alunos da Universidade de Aveiro iniciaram o projecto MapMyName com o objectivo de determinar com precisão o número de utilizadores da internet.

Embora o objectivo seja manifestamente utópico pode ser, ainda assim, interessante observar o modo de crescimento da rede social. Por isso aconselho a participação.

quinta-feira, abril 19, 2007

Vida humana






Qual deles está vivo?


O Sr João Miranda decidiu estabelecer aqui arbitrariamente que um óvulo fecundado constitui uma vida humana e, por isso, merecedor de protecção constitucional uma vez que esta estabelece que a vida humana é inviolável.

Para saber se uma lei que permite a interrupção da gravidez é constitucional ou não importa saber a intenção do legislador constitucional sobre esta matéria.

Admitindo que o momento da concepção marca o início de uma vida humana, no sentido constitucional então não se entende o facto de existir na data da aprovação da constituição um crime de aborto distinto do crime de homícidio, nem um código civil que estabelece o nascimento como o momento em que se adquirem direitos de personalidade.

Mais, em praticamente todos os laboratórios de investigação do mundo existem culturas de células humanas designadas de Hela todas originárias de um tumor do mesmo indivíduo. As células são humanas e estão vivas proliferando por todo o mundo há mais de 50 anos e utilizadas diariamente em pesquisa médica. São também elas merecedoras desta protecção, uma vez que se trata de vida humana?

E as células estaminais? E as várias células totipotentes? E as células somáticas que poderão um dia re-adquirir a indiferenciação usando técnicas de clonagem, constituindo, então, vidas humanas em potencial?

Será que o legislador constitucional entendia que uma massa de células em divisão há menos de 10 semanas, praticamente indistinguíveis dos embriões de todos os outros vertebrados a quem negamos toda e qualquer protecção constitucional constitui uma vida humana e, como tal, inviolável?

Não creio.

domingo, abril 01, 2007

sábado, março 31, 2007

200 anos antes de Martin Luther King Jr


De l'esclavage des nègres

Si j'avais à soutenir le droit que nous avons eu de rendre les nègres esclaves, voici ce que je dirais:

Les peuples d'Europe ayant exterminé ceux de l'Amérique, ils ont dû mettre en esclavage ceux de l'Afrique, pour s'en servir à défricher tant de terres.

Le sucre serait trop cher, si l'on ne faisait travailler la plante qui le produit par des esclaves.

Ceux dont il s'agit sont noirs depuis les pieds jusqu'à la tête ; et ils ont le nez si écrasé qu'il est presque impossible de les plaindre.

On ne peut se mettre dans l'esprit que Dieu, qui est un être très sage, ait mis une âme, surtout bonne, dans un corps tout noir.

Il est si naturel de penser que c'est la couleur qui constitue l'essence de l'humanité, que les peuples d'Asie, qui font les eunuques, privent toujours les noirs du rapport qu'ils ont avec nous d'une façon plus marquée.

On peut juger de la couleur de la peau par celle des cheveux, qui, chez les Egyptiens, les meilleurs philosophes du monde, étaient d'une si grande conséquence, qu'ils faisaient mourir tous les hommes roux qui leur tombaient entre les mains.

Une preuve que les nègres n'ont pas le sens commun, c'est qu'ils font plus de cas d'un collier de verre que de l'or, qui, chez les nations policées, est d'une si grande conséquence.

Il est impossible que nous supposions que ces gens-là soient des hommes ; parce que, si nous les supposions des hommes, on commencerait à croire que nous ne sommes pas nous-mêmes chrétiens.

De petits esprits exagèrent trop l'injustice que l'on fait aux Africains. Car, si elle était telle qu'ils le disent, ne serait-il pas venu dans la tête des princes d'Europe, qui font entre eux tant de conventions inutiles, d'en faire une générale en faveur de la miséricorde et de la pitié ?

in De l'Esprit des Lois, Livre XV, chapitre 6. Montesquieu, 1748.


Para quem não for evidente, isto é um texto irónico que pretende ridicularizar as crenças comuns da época, pondo-as em evidência e a nu. Depois desta introdução, Montesquieu analisa as verdadeiras causas da escravatura. Aconselho vivamente a leitura.

TRADUÇÃO

Tivesse eu de defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que eu diria:

Tendo os povos da Europa exterminado os da América, tiveram de escravizar os de África para deles se servirem para desbravar tantas e numerosas terras.

O açúcar seria demasiado caro se a planta que o produz fosse cultivada por outros que não escravos.

Estas criaturas são negras da cabeça aos pés; e têm o nariz de tal modo achatado que é quase impossível sentir pena deles.

Não é possível crer que Deus, que é um ser sábio, tenha colocado uma alma, sobretudo boa, num corpo totalmente negro.

É tão natural pensar que é a cor que constitui a essência da humanidade, que os povos da Ásia, que fazem eunucos, negam aos negros qualquer semelhança connosco de uma forma ainda mais evidente.

A cor de pele pode ser avaliada pela cor dos cabelos que, entre os Egípcios, os melhores filósofos do mundo, era de tal importância que aniquilavam todos os homens ruivos que lhes caíssem nas mãos.

Uma prova de que os negros não possuem senso comum é que preferem um colar de vidro a um de ouro, que é tão apreciado entre as nações civilizadas.

Não é possível supormos que estas criaturas sejam homens porque se os supuséssemos homens começaríamos a crer que nós próprios não somos cristãos.

As mentes fracas exageram demasiado as injustiças feitas para com os africanos. Porque se fosse como dizem não seria de esperar que os Príncipes da Europa, que fazem entre eles tantas convenções inúteis, não tivessem já feito uma geral em favor da misericórdia e da compaixão?

Da Democracia




Está em curso uma reforma do funcionamento da Assembleia da República. Uma proposta apresentada pelo grupo parlamentar do Partido Socialista apresenta várias recomendações interessantes para melhorar o funcionamento e a imagem do Parlamento, mas algumas questões fundamentais ficam por abordar por saírem fora do âmbito da referida reforma,

Embora a Democracia me pareça a única forma aceitável de constranger a liberdade de cidadãos livres às necessidades do bem geral existem quatro pontos fulcrais que me parecem essenciais para uma democracia funcional:

  • Responsabilização dos deputados: A arquitectura constitucional portuguesa garante um quase absoluto monopólio partidário nos trabalhos parlamentares em que a responsabilidade e o poder de decisão se diluem nas estruturas dos partidos. A noção de disciplina partidária oblitera quase totalmente a necessidade de cada partido ter mais do que um representante no parlamento. Por outro lado, os deputados, apesar de serem eleitos em círculos eleitorais de carácter distrital, representam a nação, o que significa que cada cidadão não tem um representante que deva responsabilizar, mas sim 230, e que não elegeu nenhum em particular. A solução actual nem garante uma total proporcionalidade dos votos (isso só seria obtido com um único círculo nacional), nem um sistema de representação personalizado (que só se obteria com um representante específico para uma dada circunscrição eleitoral). Isto para não falar do princípio um cidadão, um voto que possibilita, em teoria, a eleição de representantes que não traduzem verdadeiramente a expressão de vontade dos cidadãos e que exige sistematicamente o recurso ao voto útil.
  • Vacuidade do debate parlamentar: Todo o debate que importa ocorre ou no seio dos partidos ou nos meios de comunicação social. O debate parlamentar reduz-se quase completamente a uma série de declarações políticas que pouco o nada fazem para mudar a posição dos parlamentares que, no fim de contas, acabam por reiterar a posição do seu partido, eventualmente com algumas concessões que são mais fruto das pressões dos media e dos grupos de interesse do que da bondade dos argumentos dos deputados dos outros partidos.
  • Decisão política versus decisão técnica: Os deputados não são nem têm de ser especialistas nos diversos temas sectorias em que são chamados a decidir. Cabe ao parlamento e, em geral, aos políticos definir estratégias e objectivos políticos e aos técnicos encontrar as soluções mais eficientes para a estratégia e objectivos comissionados. Vários equívocos poderiam ser evitados na vida política portuguesa em que os líderes frequentamente aparecem como especialistas universais se se tivesse uma noção clara das fronteiras da decisão política. Um clara definição dessa fronteira seria também vantajosa para a qualidade da nossa democracia porque os cidadãos conseguem facilmente avaliar uma decisão política mas, por vezes, têm dificuldade em avaliar os méritos de uma decisão técnica. O estabelecimento desta fronteira é particularmente importante porque os pressupostos da decisão política e da decisão técnica são fundamentalmente diferentes. A decisão política consiste numa hierarquização mais ou menos arbitrária de prioridades e de valoração relativa de princípios. A decisão técnica consiste na utilização de métodos rigorosos (embora nunca infalíveis) para determinar a solução mais eficiente para um dado problema e, logo, é um processo intrinsecamente ademocrático (a verdade não é democrática!).
  • Rejeição da ditadura da maioria: Uma sociedade democrática é uma sociedade em que devem poder conviver cidadãos livres em que a sua liberdade só seja limitada pelos constrangimentos dos imperativos do interesse geral devidamente justificados e na medida estritamente necessária. Os órgãos de soberania devem abster-se de impôr visões morais ou mundividências particulares mas devem sim definir a liberdade de todos e maximizar o bem-estar da pluralidade dos cidadãos. Não é evidente como é que um órgão parlamentar (ou qualquer órgão democraticamente eleito) possa garantir que uma democracia não degenere numa ditadura da maioria sofrendo de incontinência legiferante. Devem existir instâncias que permitam fazer este controlo. Nalguns países, instâncias judiciais de cúpula assumiram este papel, em Portugal este controlo só existe muito indirectamente. Estamos reféns da boa-vontade e da qualidade dos nossos deputados. (sei que estão a pensar na magistratura do presidente da república, mas os poderes do presidente da república estão adaptados para garantir o statu quo e não para higienizar a proliferação legislativa já existente que limita inutilmente a liberdade dos cidadãos).

sexta-feira, março 30, 2007

Nós e a Europa

Ou serão os italianos e a Europa?

Afinal, os portugueses não são os únicos com complexos. E.. quem são os europeus já agora?

quarta-feira, março 28, 2007

Quem disse que a religião não era uma doença?







Note-se também o estranho espectáculo que resulta do facto de um jornalista se armar em antiséptico (e, com isso, levar a sério alguém que é indubitavelmente desequilibrado).

terça-feira, março 27, 2007

Energia atómica

Cor



Fazendo bibliografia ao estilo da UNITED COLORS OF BENETTON.

Diagnóstico



Algum botânico ou biólogo vegetal sabe dizer-me se as minhas flores estão mortas?

segunda-feira, março 26, 2007

Grandes Portugueses



Um programa ridículo com um desfecho patético.

quinta-feira, março 08, 2007

RNAzinhos

O que eu tenho estado a estudar ultimamente:



Quase tudo em biologia se pode explicar com esquemas deste género, e é fácil ficar-se com a impressão de que, interiorizando o esquema, se compreendeu todo o mecanismo.

Na realidade não é assim. Não só os esquemas são necessariamente simplificações daquilo que se sabe, mas também: não fazem, geralmente, distinção entre factos bem estabelecidos e especulações; omitem muitas vezes pormenores importantes para quem tem interesse em fazer um modelo formal do mecanismo; são ambíguos e, por vezes, certas ilustrações, devido a opções meramente estéticas, acabam por induzir o leitor em erro.

Mas ficam sempre muito bem em artigos e apresentações. :-)

segunda-feira, março 05, 2007

Salut Lyon



Je suis en France depuis janvier et je n'ai pas eu accès internet avant la semaine dernière. Sinon, je suis déjà bien installé et je pourrai bientôt reprendre les posts ici.

À toute..

terça-feira, outubro 17, 2006

Logopenia




Temo que o título deste blog induza os seus leitores (hipotéticos) num escandaloso equívoco. Ao invés de ser um exercício logorreico, tem sido sistematicamente um exemplo de logopenia crónica.

Este deserto de ideias, esta desídia literária é, em parte, justificada por algum excesso de trabalho a par de alguma indisponibilidade intelectual. Finda que está a silly season é importante que as intervenções que aqui ofereça a uma audiência imaginária versem sobre assuntos sérios. E assuntos sérios não é coisa fácil de tratar. A honestidade intelectual exige que um assunto sério seja tratado com a profundidade devida e com a adequada ponderação. Mas num mundo de sumários executivos, de sinopses e de take home messages não há espaço (tempo, melhor dizendo) para tratar estas graves matérias com avisada atenção.

Estamos, assim, nas nossas interacções hodiernas, condenados a vislumbres, a explorações superficiais da miríade de temas que competem pela nossa atenção. A consequência imediata deste estado de coisas é que no nosso mundo de tempo escasso o mais importante é o não-dito, o deduzido e o reconstruído. E por isso o leitor tem agora responsabilidades acrescidas. Não havendo oportunidade para dizer tudo, terá o leitor de explorar as ramificações da mensagem meramente delineada. Por tudo isto, abundam neste mundo os equívocos e os trejeitos pós-modernos. Por tudo isto se ouve no Telejornal que "o futebolista vai ser operado ao calcanhar de Aquiles", ou um personagem de Telenovela balbuceando "Estás tramado, descobri o teu tendão de Aquiles!". Por tudo isto, vivemos num estado de ignorância pasmada.

quarta-feira, julho 05, 2006



Quae moerebat et dolebat,
Et tremebat cum videbat
Nati poenas incliti

domingo, junho 11, 2006




Una voce poco fa
qui nel cor mi risuono';
il mio cor ferito e' gia',
e Lindor fu che il piago'.
Si', Lindoro mio sara';
lo giurai, la vincero'.
Il tutor ricusera',
io l'ingegno aguzzero'.
Alla fin s'acchetera'
e contenta io restero'
Si', Lindoro mio sara';
lo giurai, la vincero'.
Io sono docile, son rispettosa,
sono obbediente, dolce, amorosa;
mi lascio reggere, mi fo guidar.
Ma se mi toccano dov'e' il mio debole
saro' una vipera e cento trappole
prima di cedere faro' giocar.


in Il barbiere di Siviglia, G. Rossini (1816)



Deh, vieni alla finestra, o mio tesoro,
Deh, vieni a consolar il pianto mio.
Se neghi a me di dar qualche ristoro,
Davanti agli occhi tuoi morir vogl'io!
Tu ch'hai la bocca dolce più del miele,
Tu che il zucchero porti in mezzo al core!
Non esser, gioia mia, con me crudele!
Lasciati almen veder, mio bell'amore!


in Don Giovanni o l'empio punito, W. A. Mozart (1787)

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Brokeback Mountain





O último filme de Ang Lee tem vindo a chamar as atenções nos últimos tempos. E não era para menos: há meses que só se ouvia falar de um filme de "cowboys gays". Todo este hype causa, geralmente, alguma desconfiança.

O filme revelou-se, no entanto, uma obra-prima de extrema sensibilidade. O epíteto de filme sobre "cowboys gays" é injusto e redutor. É antes uma históra sobre um relação complexa entre dois homens que nutrem um pelo outro sentimentos proibidos tanto pela moralidade da época como pelos seus próprios preconceitos. Não me alongarei muito sobre o filme e revelarei muito pouco acerca da história porque penso que quem ainda não viu deve deixar-se envolver pelo filme sem ser guiado por nenhuma interpretação que eu ofereça aqui. Se o leitor não viu ainda o filme o melhor é mesmo nem sequer ler este post.

Ennis del Mar é um homem simples e de poucas palavras que é interpretado brilhantemente por Heath Ledger. No Verão de 1963 aceita um trabalho de pastoreio na montanha Brokeback com Jack Twist (Jake Gyllenhaal). Aí surge inevitável mas inesperadamente uma paixão entre os dois homens que ambos não compreendem totalmente.

O regresso repentino da montanha que interrompe a construção da relação entre os dois é um prelúdio para o que serão as décadas seguintes e desencadeia aquilo que é o primeiro sinal da batalha interior de Ennis, perseguido por uma visão traumática de infância em que um homem (também cowboy) terá sido linchado por viver num rancho com outro.

Ambos acabam por casar e ter filhos e reencontram-se apenas volvidos 4 anos. A partir daí segue-se uma vida monótona e dolorosa pontuada apenas por algumas idas à montanha que se transforma numa espécie de santuário onde podem fugazmente viver a vida que de outro modo lhes era negada (ou que se negavam).

O filme segue o ponto de vista de Ennis e, por isso, é também lacónico e profundamente sensível. As deixas são escassas porque são os silêncios que carregam o subtexto do filme.

Não é um filme intelectual com grandes lucubrações sobre a condição dos dois homens, é antes um testemunho de uma história trágica. A escassez dos diálogos obriga-nos a vestir a pele dos personagens e a partilhar a sua tragédia.

As relações dos dois homens com as respectivas mulheres, elas também vítimas, são honestas mas muito incompletas. O filme evita os rótulos que, de outro modo, seriam inadequados à época e ao contexto em que a história se passa. Os dois homens não compreendem totalmente o que sentem e, por isso, não poderiam nunca ter comportamentos nem atitudes lineares e que hodiernamente são identificadas como gay. Não existem propriamente maus da fita, o filme retrata sobretudo o conflito dos personagens consigo mesmos e com os outros (reais ou imaginados). Não é um filme panfletário e talvez por isso tenha frustrado a comunidade gay mais militante. É um filme que consegue contar uma história de amor sem ser um melodrama e também sem ser asséptico. O facto de isto ter sido possível com um tema homossexual é provavelmente o melhor serviço que Ang Lee poderia fazer ao movimento gay.

A banda sonora carregada de pathos serve genialmente as poucas cenas em que é utilizada. As muito discutidas cenas eróticas (homo e hetero) são feitas com muito bom gosto e são essenciais para transmitir as evidentes diferenças, por um lado, entre o carácter da relação de Ennis com Jack e com a sua mulher e, por outro, a confusão de violência e carinho com que Ennis encara Jack.

As cenas finais são carregadas de um simbolismo e de uma força emotiva arrebatadoras. Uma lição de vida sem ser moralista, eis o que Ang Lee conseguiu. Neste filme está encarnada uma reflexão dolorosamente emotiva sobre a coragem para ser feliz.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Andam todos distraídos



Realizaram-se hoje eleições presidenciais.

Nos últimos dias tenho ouvido várias pessoas vaticinarem o fim da liberdade em Portugal. Não estando em curso nenhuma tentativa de golpe de Estado não entendo, sinceramente, ao que estas pessoas se vêm referindo.

Isto é tanto mais estranho quanto o facto de vários militantes do Partido Socialista, próximos da candidatura de Manuel Alegre, serem alguns dos mais sonoros arautos desta tese do fim da Democracia em Portugal.

Não só hoje se concluiu uma eleição democrática dentro da mais pacata das normalidades como em São Bento persiste uma maioria socialista também eleita democraticamente.

Advogar que estamos perante o fim de todas as liberdades só porque ganhou um candidato que não se apoia é uma manifestação de uma profunda falta de espírito democrático. Se não se acredita num sistema democrático então que se assuma, de uma vez por todas, que se prefere um outro modo de eleição. Quem sabe.. voto censitário? sistema de partido único?

Por outro lado, parece ter escapado a estas pessoas o facto elementar de que quem conduz a política em Portugal é o Governo. Não cabe dentro das competências do Presidente da República definir políticas e muito menos restringir liberdades.

Poderíamos discutir o mérito do Presidente eleito no âmbito do exercício dos poderes presidenciais. Mas neste momento, se somos verdadeiros democratas, temos de aceitar a decisão do eleitorado ou então propor um sistema político diverso em que os órgãos de soberania não sejam escolhidos escutando o Povo que, a ouvir certas pessoas, parece tão pouco apto a tomar este tipo de decisões. Não se pode é reclamar ser o bastião das liberdades e simultaneamente escamotear uma das liberdades essenciais - a liberdade de voto.

Eu não estou entusiasmado com o resultado desta eleição e não estaria qualquer que fosse o resultado. Assim como não sou um especial entusiasta do sistema democrático, muitas vezes designado como o menos mau dos sistemas políticos. Simplesmente acho que a chantagem demagógica não deve ser uma arma política e não compreendo como é possível conviver com tal dissonância cognitiva.

Em todo o caso, a participação democrática não se esgota com o exercício do direito de voto. Um mandato eleitoral não é um cheque em branco e, apesar de não haver nenhum mecanismo constitucional para a destituição de um Presidente da República, a opinião pública e o direito de manifestação são formas eficazes de participação na vida cívica. (Não esquencedo as formas não constitucionais de destituição, que me abstenho de mencionar)

A falácia em todo este discurso está patente num detalhe subtil e reside no facto de haver uma linha ténue separando uma Democracia de uma Ditadura da maioria. Num sistema político em que virtualmente todo o poder resulta da expressão de uma maioria há poucas oportunidades para instituir um espaço de liberdade para todos. Estamos permanentemente reféns de políticos que saibam cativar multidões para depois governar de modo a garantir a felicidade de todos, mesmo que com a oposição pontual da maior parte. Nas raras ocasiões em que uma pessoa concentra estas duas capacidades a Democracia justifica-se e emerge como o mais nobre dos sistemas.

A frustração daqueles que hoje dizem que a Liberdade morreu em Portugal é, enfim, uma frustração em relação às fragilidades do sistema democrático. A solução, que é já sabida de muitos é manipular educar o Povo, i.e., dar-lhe instrumentos para que possa, de forma informada e consciente, tomar as melhores decisões para todos e cada um dos cidadãos.

domingo, dezembro 25, 2005

Um aniversário importante



Hoje é um dia especial. Há 362 anos nasceu Isaac Newton. Era tão pequeno quando nasceu que a mãe temeu que não sobrevivesse.

Revolucionou a ciência, unificando o céu e a terra com a sua mecânica. Resolveu inúmeros problemas abertos em Física e Matemática. É talvez o físico mais conhecido de sempre.

Tanto quanto se sabe morreu virgem, mas deixou ao mundo um legado preciosíssimo.

sábado, dezembro 24, 2005

O Natal

Hoje cumpri um ritual que faz, cada vez mais, parte do ceremonial desta quadra do ano. Enviei a todos os meus amigos e colegas uma mensagem de Natal.

Singela nas palavras, a mensagem desejava a todos um Feliz Natal, qualquer que fosse o significado que cada um lhe atribuísse.

Muitos mostraram espanto por eu admitir que o Natal se tratava de uma noção polissémica. Com efeito, recebi algumas respostas que retorquiam que Natal tinha um único significado: o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo (Iesum Christum Dominum nostrum para os leitores do Vaticano).

No entanto, é já sobejamente sabido que este senhor Jesus (do Hebraico Deus salva) Cristo (do Grego Messias) nasceu efectivamente em data incerta e que este período do ano foi convencionado como data comemorativa por razões meramente logísticas (vide O Natal dos Deuses Cristãos).

De resto, significados alternativos são bem conhecidos nos círculos politicamente correctos dos Estados Unidos que insistem em desejar Happy Holidays em vez do tradicional Merry Christmas por nesta altura também se celebrar o Hannukah e o Kwanza.

Para os cínicos, o Natal representa somente um excelente negócio para os comerciantes (facto incontestável) e para outros é simplesmente a altura mais deprimente do ano.

Para mim é uma excelente desculpa para depurar a agenda telefónica.

domingo, novembro 13, 2005

Moi, MSc



Concluí as provas de mestrado no dia 11 de Novembro. Incidentalmente, o fim da minha vida de licenciado não foi a única mudança que se operou na minha vida nos tempos recentes.

Não vou dignificar essas mudanças com uma menção neste blog. Vou apenas dizer que há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que honram a lealdade e que pensam nas ramificações dos seus comportamentos a um horizonte mais longínquo do que os próximos 5 dias e aquelas que, pelo contrário, justificam o seu comportamento por uma atitude hedonista pseudo-racionalista.

Dirão alguns que o ser humano é mesmo assim. Talhado para servir os seus interesses imediatos irá perseguir a sua "felicidade" independentemente do impacto que isso tenha nos outros. Aqueles cujo cinismo já cristalizou uma atitude que vê as emoções humanas como uma terrível manifestação de fraqueza não terá dificuldade em aderir a esta tese. Outros, como eu, que ainda não renunciaram ao seu direito de sentir não deixam de ficar perplexos perante a crueldade da libido que obfusca mentes e que desencadeia um sem-número de racionalizações cujo propósito não é outro senão a tentativa de encontrar uma absolvição para a ditadura do corpo.

Acabei o mestrado e deixei para trás dois pilares que ninguém suspeitava serem ocos e ameaçarem ruir ao primeiro estremecimento.

Acabei o mestrado e sinto-me órfão.

Mas há tantas pessoas no mundo...

quarta-feira, julho 13, 2005

Até que a morte nos separe



O registo histórico mostra que desde sempre os seres humanos têm estabelecido binómios onde homem e mulher se unem numa relação privilegiada para proveito mútuo tendo em vista a criação de um seio familiar que possa suportar uma prole tão extensa quanto possível.

Mesmo em sociedades que sancionam a poligamia (que se traduz quase exclusivamente em poliginia) existe um binómio privilegiado.

Não é estranho, portanto, que as religiões tenham acomodado este facto incontornável na sua doutrina moral e no seu cerimonial.

As conquistas civilizacionais dos últimos séculos têm permitido, no entanto, a construção de um espaço de liberdade individual onde cada cidadão tem podido encontrar, cada vez mais, o seu próprio caminho para a felicidade e bem-estar.

Os Estados modernos têm, assim, enfrentado o desafio de garantir esta amplitude de direitos e simultaneamente garantir um sistema de valores coerente que permita identificar os tipos de comportamento compatíveis com a vida em sociedade.

Ao fazê-lo, o Estado moderno está efectivamente a chamar a si aquilo que fora até recentemente o papel das religiões organizadas. Não é estranho, portanto, verificar que as primeiras civilizações eram efectivamente teocráticas. Este novo papel do Estado, que adquire laicidade à medida que confere aos seus cidadãos amplas liberdades de culto e de consciência, vai necessariamente apropriar-se do acervo ético e moral das religiões predominantes porque estas manifestam aquelas que foram até então as regras de conduta aceites mais ou menos zelosamente por todos. Daí em diante, cada ditame moral, entretanto transformado em norma legal, deve ser submetido a um escrutínio cuidado de modo a aferir se subsiste como mera prescripção gratuita ou herança cultural dogmática ou se, pelo contrário, pretende efectivamente acautelar legítimos direitos e aspirações sociais.

Dito isto, cabe agora analisar aquilo que subsiste na nossa ordem jurídica como noção de casamento.

A união de duas pessoas, antes de todas as suas conotações religiosas ou legais, é algo eminentemente humano e anterior ao Estado e a qualquer confissão religiosa.

Ao Estado cabe apenas enquadrar aquilo que são as aspirações de cada casal, designadamente no que diz respeito à vida em comum, à partilha em vida e à sucessão na morte.

Por que razão não deverá o Estado, então, conceder os mesmos direitos às uniões entre cidadãos, mesmo que estas não encontrem paralelo naquilo que é ditado pelas religiões predominantes? Estamos a falar, claro está, do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por que razão pessoas que nascem e que manifestam desde cedo um apelo inexorável por pessoas do mesmo sexo não deverão poder gozar do mesmo tipo de sanção legal ao seu compromisso mútuo? Esta alteração da ordem legal não conseguiria mais do que ampliar os direitos e as oportunidades de busca de felicidade destes cidadãos cuja dignidade social e igualdade perante a lei é garantida virtualmente por todas as declarações de direitos modernas. Uma resistência a esta mudança só pode ser entendida no contexto de uma deficiente separação entre as Igrejas e o Estado.

Para aqueles cuja inspiração moral se confunde com uma noção de "naturalidade" pode ainda acrescentar-se que não são raros os exemplos de animais que estabelecem autênticos casais homossexuais em tudo semelhantes aos seus congéneres heterossexuais exceptuando, claro está, a capacidade reprodutiva. No entanto, experiências conduzidas por zoólogos em pinguins demonstram que quando casais homossexuais são dados a criar crias oriundas de parelhas heterossexuais tratam de cuidar delas com um empenho em tudo semelhante ao dos seus progenitores.

Se fosse necessário acrescentar mais alguma coisa, poderia dizer-se que o fenómeno da homossexualidade não é algo inédito nas sociedades humanas e que encontra várias manifestações em todas as épocas e em todas as sociedades. Não se trata, portanto, de um produto da sociedade moderna. Mas, efectivamente, só as recentes conquistas civilizacionais estão em condições de permitir a estas pessoas um exercício pleno das suas cidadanias e dos seus afectos, sob protecção legal e indo ao encontro das suas legítimas aspirações.


Por que esperamos?

sexta-feira, junho 17, 2005

I hereby declare the silly season open.

sexta-feira, maio 13, 2005

Catullus



Ille mi par esse deo uidetur,
ille, si fas est, superare diuos,
qui sedens aduersus identidem te
spectat et audit
dulce ridentem, misero quod omnis
eripit sensus mihi: nam simul te,
Lesbia, aspexi, nihil est super mi
vocis in ore;
lingua sed torpet, tenuis sub artus
flamma demanat, sonitu suopte
tintinant aures, gemina et teguntur
lumina nocte.
otium, Catulle, tibi molestum est:
otio exsultas nimiumque gestis:
otium et reges prius et beatas
perdidit urbes.

quinta-feira, maio 12, 2005

Age of Consent



Recently, the Portuguese Constitutional Court stroke down article 175 of the Penal Code, which punished homosexual acts with adolescents between 16 and 18 years of age with imprisonment.

The Court, whose powers include judicial review of the constitutionality of laws, has deemed the article unconstitutional because it violates the principle of equality. This opinion is certainly not unrelated to the fact that the Constitution has been amended recently to include sexual orientation as a ground for non-discrimination.

This is surprising because Portugal does not have a tradition of legislative innovation through judicial decisions.

The age of consent is thus now the same regardless of the sex of the participants.

If this legislative reform had come from Parliament it would have shown that MPs have, at least, a notion of coherence, since they were the ones who revised the Constitution but pusillanismously failed to propagate the changes to the rest of the legal order. This way MPs have averted any sort of public scrutiny but have also shown an unwillingness to do what they were elected for.

terça-feira, maio 10, 2005

Europe Day



Yesterday we celebrated the Europe Day.


Est Europa nunc unita
et unita maneat;
una in diversitate
pacem mundi augeat.

Semper regant in Europa
fides et iustitia
et libertas populorum
in maiore patria.

Cives, floreat Europa,
opus magnum vocat vos.
Stellae signa sunt in caelo
aureae, quae iungant nos.


Proposal for an European Anthem
Music: "Freude, schöner Götterfunken", Beethoven

segunda-feira, maio 02, 2005

A language shift

For the sake of a reading audience I have decided that this blog will henceforth be written in the tongue of Shakespeare. I may decide to post in Portuguese occasionally everytime I wish to talk about a subject which chiefly concerns Portuguese-speakers.

Many were the events in the last few months that could have been the subject of many posts here. I have successfully averted the need to talk about the latest general election in Portugal or the election of the new pontiff. Which is good, because I sense that it could have led to the mustering of a bashing crowd.

Let us wait for more amiable times.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

</christmas-season>

quinta-feira, dezembro 30, 2004

Nihil novi sub sole

Há 26 anos a respirar...

Há 24 anos a estudar...

Quantos mais a pensar?

domingo, dezembro 26, 2004

Mensagem de Natal

Hoje tive a oportunidade de ver o senhor Santana Lopes a enviar a sua mensagem de Natal aos Portugueses. Não vi ali um governante, mas sim um líder medíocre com um discurso demagógico em tom de pré-campanha.

Como é habitual não houve naquelas palavras o mínimo vislumbre de discurso de Estado. Aliás, não houve naquelas palavras o vislumbre de conteúdo algum.

O senhor Santana Lopes limitou-se a enunciar várias frases, todas começadas com a fórmula "Eu, como primeiro-ministro", não houvesse alguma alma distraída ou numa tentativa de se convencer a si mesmo que sim! ainda era o chefe de Governo! usando um tom monocórdico nauseante.

De resto, ouvimos várias mensagens comoventes para os pobrezinhos e coitadinhos deste País, a quem o senhor Santana Lopes pediu esperança renovada e confessou gostar de poder resolver tudo com um "golpe de mágica", como quem diz que, com ele, só um milagre os poderia tirar da miséria.

Penso que não estarei a exagerar se disser que este discurso era expectável de uma velhinha num jantar de beneficência mas não de um Primeiro-Ministro com responsabilidades governativas.



sexta-feira, dezembro 17, 2004

<christmas-season year=2004>

domingo, dezembro 12, 2004

No more...








Ad perpetuam rei memoriam

Abdico do vício, gradual e definitivamente.


quarta-feira, dezembro 08, 2004

Dicionário do Diabo

A palavra "charme" não se encontra nos dicionários portugueses. Uma vez que, pelo menos uma parte da população, tende a usar este termo com alguma frequência damos aqui o nosso contributo para a sua definição. Não somos, é certo, lexicógrafos, mas as nossas intenções são honestas.


charme s.m. palavra sem significado para os indivíduos do sexo masculino; para a população feminina designa uma abstracta qualidade dos homens de meia-idade que lhes garante um certo grau de atractividade. ter --: ter dinheiro, um bom carro ou um vistoso apartamento. (Do Lat. carmen)

sexta-feira, dezembro 03, 2004

No comments...

- correu -te bem o teste?
- sim, professora, obrigada.
- e qual era o texto para ser analisado?
- uma crónica da laurinda alves , professora.
in Torneiras de Freud

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Um meta post

Para aquelas dezenas de almas que vêm parar a este blog em busca da definição de logorreia, aqui me desobrigo:



Logorreia

do Gr. lógos, discurso + rhoía, que corre

s. f., necessidade irresistível de falar que apresentam certos alienados;
verbosidade inútil e sem sentido.


A verdadeira rentrée



A dissolução da Assembleia da República e consequente queda do Governo de Santana Lopes marca o verdadeira fim da silly season de 2004.

terça-feira, novembro 30, 2004

E pronto...



O Conselho de Estado vai ser convocado. Ao que tudo indica, o Governo cairá e a Assembleia da República será dissolvida.

Santana Lopes acabou de dizer:

[...] O senhor Presidente acabou de me comunicar a decisão de iniciar os contactos institucionais com vista à dissolução do parlamento [...]
Como sempre respeito a decisão do senhor Presidente da República.
Não concordo, mas respeito. Não temo eleições antecipadas. Vamos tentar defender os interesses de Portugal [...]

Mulholland Dr.



Filipe Faria diz:

A industria onírica inicia a sua demanda pelo sentido pseudo lógico.
O objectivo da arte não é ter sentido aparente, é despertar algo dentro de cada um que a observa ... Se o senhor Lynch consegue isso com inúmeras mentes (não acredito que sejam todos “intelectuais”, ou "wanna be´s", ou "whatever"), tudo o resto são formulários de lógica que pouco interessam para a finalidade artística.

E eu digo:

É o paroxismo do incompreensível.

Uma coisa é comunicar sensações em bruto, sem um construto destinado à cognição. Outra é a masturbação intelectual de atirar aos outros retalhos inintelegíveis para gáudio daqueles que podem, assim, reservar para si um putativo entendimento dessa obscura arte do absurdo.

Não estou certo se este filme de Lynch cabe na primeira, na segunda ou em outra categoria.

Talvez seja um génio. Não serei eu o juiz disso.

Como dizes, o objectivo da arte pode ser simplesmente despertar sensações em bruto. Nesta concepção, um grito pode ser uma manifestação artística. Não tenho nada a opôr. Mas, nesta instância, prefiro a experiência directa.

Valorizo muito mais a arte que constrói sobre as sensações. Que as relaciona, perspectiva e explora.

Em todo o caso, existem algumas interpretações interessantes do filme de David Lynch aqui.

domingo, novembro 28, 2004

Hoje é Domingo



Os Babilónios são a primeira civilização de que há registo da utilização de uma semana de 7 dias, dedicados às 7 luminárias (Sol, Lua e cada um dos 5 planetas visíveis).

A norma ISO 8601 prescreve que a semana tem início à segunda-feira. O Domingo é, por isso, o último dia da série.

A tradição cristã reserva o Domingo, dia do Senhor, para a adoração divina.

Para nós, ateus, este dia não passa de 24 horas cheias de tédio.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Sobre coisa nenhuma



Tenho algo (quase) inútil para partilhar convosco.

Passei as últimas horas a dedicar-me ao assunto e penso estar em condições de anunciar a todos os interessados que tenho uma prova que o mínimo dos elementos de qualquer intervalo definido sobre uma lista de índices dos nós visitados de uma árvore durante uma travessia em profundidade-primeiro corresponde ao índice do antepassado comum mais próximo dos extremos do intervalo.

[...]

Quod erat demonstrandum

segunda-feira, novembro 15, 2004

Rufus Wainwright @ Aula Magna



Sábado, 13 de Novembro, 22 horas.

As luzes da Aula Magna apagam-se de repente.

No meio de fumo e de uma melodia a evocar Judy Garland entra em palco Rufus Wainwright.

Daí em diante foram quase duas horas de êxtase.

Para mim foi uma espécie de baptismo musical. Foi a primeira vez que fui a um grande concerto de música Pop de grande qualidade e fiquei siderado.

A espontaneidade, a autenticidade e a tensão emocional do trabalho de Rufus Wainwright fizeram-me experienciar o numinoso naquela noite de Sábado.

O artista também gostou da audiência. Em várias ocasiões disse estar surpreendido pela recepção calorosa e ficou a promessa de voltar com a banda.

Da minha parte, foi o confirmar de uma paixão.

Come back soon, Rufus!

quinta-feira, novembro 04, 2004

Activar o ADN



Este era o título de um artigo da revista Xis do Público de 30 de Outubro, cujo tema era este livro .

O livro, escrito por Robert Gerard, PhD fala sobre como "activar a informação contida no nosso ADN" para que passemos a "aproveitar plenamente o nosso potencial e, assim, ter uma vida mais equilibrada e saudável". Quem ficou com a estranha sensação de que isto se trata de uma reedição da ideia de que usamos apenas 10% do cérebro acertou em cheio.

O livro não li (e, diga-se, não tenciono). O artigo da revista Xis, no entanto, faz adivinhar um chorrilho de disparates new age que atingem proporções indizíveis. O pior é que o comentário ao livro não está em nenhuma secção de humor da revista. É apresentado como um livro sério e proveitoso para os leitores do Público.

Numa época em que todos andamos com a expressão "Sociedade do Conhecimento" na boca, estes tiques de obscurantismo com jargão pseudo-científico só têm paralelo nas crenças medievais.

Quer o senhor Doutor Robert Gerard dizer que andamos todos com o ADN inactivo e que por via das suas "orações de cura do ADN" podemos activá-lo? Este tipo de afirmações não tem ponta por onde se lhe pegue.

Eu tinha a inocente ideia de que o objectivo dos jornais era informar. Embora tolere frivolidades nos seus suplementos não consigo encaixar nenhum tipo de serviço neste tipo de estupidez inenarrável.


Quem se senta à frente, de novo



O povo americano escolheu ontem os membros do Colégio Eleitoral que vai eleger o próximo Presidente dos Estados Unidos num exercício de uma democracia incompreensível para os olhos europeus.

Não só o sistema eleitoral americano parece ser inutilmente rebarbativo como o mundo (fora da América) tem dificuldade em compreender como é que o presidente mais pateta da história americana pode conseguir uma expressiva reeleição.

O The Economist colocava a questão "Bush vs Kerry" desta forma: "The Incompetent OR The Incoherent?". E eu coloco desta: "Como raio é que é possível?".

Um presidente que partiu as tábuas da lei internacional, que levou o conceito de unilateralismo americano a limites inéditos, que criou o maior défice orçamental na história dos Estados Unidos... um presidente virtualmente analfabeto obteve uma das votações mais expressivas de sempre.

Isto leva-nos necessariamente a questionar os fundamentos da Democracia.

Em todo o caso acredito, acima de tudo, na soberania dos Estados e no direito de se organizarem da forma que entenderem. Estaria verdadeiramente angustiado hoje se fosse americano. Não sendo este o caso só posso desejar que a Europa saiba proteger-se das contingências das eleições americanas.

A americanofilia sofreu nestes últimos 4 anos golpes severos e tudo indica que continuará a definhar nos próximos 4. A sociedade americana tem sido nas últimas décadas uma referência fundamental para o resto do mundo mas as suas atitudes despóticas e imperialistas têm vindo igualmente a semear ódios e a fazer nascer vários tipos de anti-americanismo.

Não são apenas odiados por serem melhores. São também odiados porque podiam ser muito mais do que são.

Resta citar um texto de Hugo Fonseca,

Hoje parece ser um dia triste para a maioria dos Europeus. "Four more years" (o slogan republicano para a re-eleição do Bush) pegou e ficou. E a reacção tem vindo de vários quadrantes. Hoje alguém perguntou-me: "tens a noção que vives entre atrasados mentais?" (Portugal). Outra pessoa dizia-me "I am still in denial" (EUA). Outro ainda disse que eram como viver em 2003 e perceber que o Bush fica até 2008 sem eleições (EUA).

Vivo no condado do Cuyahoga, onde fica Cleveland. Todos os olhos estavam fixados em nós ontem à noite: quem iria ganhar o Ohio? Os resultados das principais cidades saiam, mas do Cuyahoga publicavam-se poucos ou nenhums resultados. Afinal, as mesas de voto tinham fechado às 19:30 e porque raio era 23:00 e ainda só se tinha 15% das votações? O facto é que os americanos em muitos aspectos ofereceram uma lição de humildade do mundo sobre a democracia.

Não existem sistemas perfeitos de democracia. Mas ontem foram às urnas mais de 100 milhões de pessoas votar nas eleições mais importantes algumas vez na memória do país (e do mundo?). Sabia-se que muita gente iria votar pela primeira vez e que muita gente que tinha preferido ficar em casa em eleições anteriores iria votar desta vez. Nunca se pensou que tanta gente aparecesse. O resultado foram filas e horas e horas de espera. Horas e horas de espera onde as mesas não fechavam porque toda a gente contava e ninguém fica para trás. Muitas mesas do Cuyahoga não fecharam antes das 21:00 e das 22:00 (de acordo com o reportado na televisão). A corrida presidencial decorreu em feição: não houve problemas com o voto electrónico; não houve intimidação para com os eleitores; houve um vencedor claro e absoluto 24 horas depois das eleições - e um que ganhou o total nacional.

No Cuyahoga as pessoas esta tarde estavam tristes e a chuva que caía sobre Cleveland ajudava ao clima triste. Afinal cerca de 68% das pessoas votaram em Kerry, tendo ganho dentro do condado com uma margem de 220.000 votos (total só mesmo ultrapassado em Philadelphia). Ninguém no Ohio queria tanto uma vitória do Kerry como em Cleveland, mas a cidade não são os campos e as áreas suburbanas do país. Esse país distante que chamamos América escolheu o seu candidato; mas essas pessoas não vivem ao pé das antigas torres gémeas, não olham todos os dias sobre Manhatan e não sentem o medo de andar de metro todos os dias; essas pessoas não sentem as ameaças de segurança todos os dias contra os prédios do FMI ou do Banco Mundial. A "América real" escolheu o seu candidato: pelos valores conservadores, apoiados na religião e agitando os fantasmas do medo. É esta a América com que temos que lidar.


O que eles querem



O "homem moderno" não existe.

Aquilo que se convenciou chamar de metrossexual é um conceito absolutamente imaterial na nossa sociedade. Do mesmo modo, as únicas revistas masculinas que existem versam sobre material pornográfico, futebol e novidades automóveis. Todas as outras têm como único público-alvo a comunidade homossexual.

Ora, isto não implica que não existam pessoas do sexo masculino com as putativas características de um "metrossexual", mas é mais fácil explicá-las como idiossincrasias do indivíduo do que como um grupo social.

O homem típico tem três grandes paixões na vida: futebol (ou qualquer outro desporto de substituição, desde que possa ser palco de manifestação da sua virilidade), mulheres e beber cerveja com os amigos. Todas as restantes actividades da sua vida têm como objectivo último satisfazer uma das paixões mencionadas.

Assim, o homem típico não perde tempo a ler, a perorar sobre a vida ou a escrever em blogs, excepto se tiver a percepção de que, de alguma forma, estas actividades permitam um acesso mais imediato ou com maior sucesso às supracitadas paixões.

O sucesso profissional, a estabilidade financeira e a exuberância física trazem ao homem típico, com grande probabilidade, mais mulheres. Por isso, ele persegue estes objectivos com quase tanto afinco como o objecto do seu desejo.

Ao contrário da mulher, o homem típico define-se, ou melhor, define a sua virilidade por oposição aos outros homens. Num grupo masculino, todos competem pelo sucesso: querem ser os mais entendidos em futebol, querem ter o maior sucesso com as mulheres e querem ser o campeão social das cervejolas. Enquanto que a mulher típica se define em função do homem que pretende agradar, o homem típico define-se em função dos seus pares, por vezes numa atitude autista em relação ao verdadeiro interesse das mulheres.

Dito isto, aceito todas as acusações de misantropia.

segunda-feira, novembro 01, 2004



O que elas querem



É comum dizer-se que as mulheres são inescrutáveis. Um ser misterioso sobre o qual é impossível aos homens delinear uma teoria da mente.

Não acredito que isto seja verdade.

Por outro lado, também não acredito que as mulheres possam ser caracterizadas ou mesmo definidas como se fossem meras variações do mesmo molde.

Algumas das pessoas mais admiráveis que conheço são do sexo feminino. Mas é também entre as mulheres que encontro algumas das facetas mais pungentes da humanidade.

A mulher moderna alimenta-se daquelas revistas que não fazem mais do que a reduzir a uma espécie de dona-de-casa sofisticada. A retórica é a da libertação feminina, mas o objectivo latente é sistematicamente o de casar bem, construir uma família e ter muitos filhos. No fundo, a mulher moderna continua a definir-se pela sua capacidade de agradar à sua cara-metade.

E nesta tentativa de sofisticação artificial a mulher caminha inevitavelmente para a mediocridade. Os objectivos a que se propõe são demasiado fáceis, demasiado os mesmos de sempre.

A mulher é, portanto, a primeira e mais profunda vítima de uma sociedade que se constrói com base na noção de êxito. Porque o êxito que se lhes reserva é simplesmente o sucesso na maternidade.

Os efeitos laterais deste estado de coisas é uma feminidade intolerante com tudo aquilo que frustre este programa. No fundo, a mulher moderna odeia tudo aquilo que nega o seu estatuto de fêmea e o seu papel tradicional na sociedade. A mulher moderna sonha com o homem viril do qual depende para se definir e não suporta nenhum sinal de fraqueza, de feminidade, em suma, de humanidade num homem.

É profundamente triste que as mulheres de hoje reclamem somente este papel de co-existência. É profundamente triste...