Muito se tem escrito na blogosfera a propósito da alegada violação do direito de propriedade quando se proíbe o fumo num estabelecimento aberto ao público.
Em primeiro lugar, deve distinguir-se o direito de propriedade de um direito de soberania. Não há ofensa ao direito de propriedade por o Estado, no exercício da sua função legislativa, decidir regular certos tipos de comportamento lesivos dos interesses dos utentes de espaços abertos ao público.
De resto, existem vários limites à forma como um proprietário de um espaço aberto ao público pode fazer uso da sua propriedade, mas apenas enquanto esta for usada nessa qualidade. Designadamente, não discriminar nem negar vender produtos ou prestar serviços a pessoas por razão da sua raça, sexo, etc. E não pode ainda, por exemplo, comercializar produtos que manifestamente sejam lesivos para a saúde humana, mesmo que o indique expressamente através de sinaléctica e menção própria. Duvido que alguém advogue o direito de um proprietário vender bolinhos de arroz polvinhados com DDT (mesmo que este facto seja devidamente assinalado), em nome do seu direito de propriedade ou da liberdade dos seus clientes poderem escolher ou não consumir esses produtos. E ninguém o advoga porque o risco de alguém consumir um bolinho de arroz polvilhado com DDT por engano, porque não entende o que é o DDT ou porque, entendendo, não sabe ler ou de outra forma não tomou consciência desse facto não é negligenciável, sobretudo quando compaginado com a evidência de que, quem se quiser matar, pode ir fazê-lo para outro lado qualquer.
Assim, exigimos que estes espaços funcionem em condições adequadas de higiene e de salubridade e que os seus produtos tenham algumas garantias de qualidade.
O senhor proprietário (ou proprietária) pode passar a gozar plenamente da sua propriedade (incluíndo consumir bolinhos de DDT ou manter uma cozinha sem o mínimo de condições de higiene) a partir do momento em que esta deixe de estar aberta ao público, porque no momento em que adquire esse estatuto existem certas regras respeitantes ao espaços públicos que se impõem. (Pela mesma razão, deploro os acontecimentos que ocorreram nos estados unidos há uns anos atrás, em que cidadãos foram expulsos de centros comerciais por vestirem t-shirts com palavras de ordem contra a guerra, precisamente porque estavam num espaço aberto ao público).
Durante demasiado tempo os utentes dos espaços abertos ao público têm-se resignado ao facto de terem de conviver com o fumo, mesmo sabendo que lhes é prejudicial. Por outro lado, não existe um incentivo para que os proprietários proíbam o fumo nos seus estabelecimento uma vez que estarão sempre a abdicar de clientes a favor dos seus concorrentes. Assim, não existem mecanismos de mercado que possam arbitrar esta matéria. A única forma de proteger os interesses e a saúde dos cidadãos é pura e simplesmente proibir esta prática nos locais onde esta é particularmente lesiva, designadamente em locais fechados abertos ao público.
Tivessem os não-fumadores (e, talvez, os fumadores) maior consciência dos malefícios do fumo passivo (e activo) e já se teria feito aprovar uma lei mais cedo.
Outro aspecto que pouco se tem enfatizado é o facto de que nem sempre são os proprietários dos espaços que neles trabalham. Assim, sujeitam-se os trabalhadores, fumadores ou não, à presença do fumo. E o argumento de que os ditos trabalhadores podem sempre procurar trabalho noutro local não colhe porque: a) o trabalhador terá tendência a subavaliar o risco futuro de estar exposto ao fumo face ao benefício imediato de ter um salário ao fim do mês; b) actualmente os espaços abertos ao público dentro do mesmo ramo de actividade (restauração, ou local de diversão nocturna, por exemplo) onde é proibido fumar são escassos ou inexistentes. Por isso trata-se também, para quem não ficou convencido com os argumentos anteriores, de uma questão de higiene e segurança no trabalho.
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