quarta-feira, maio 30, 2007

Quem paga a saúde?



Tiago Mendes escreveu aqui e também no Diário Económico um artigo a defender o princípio do consumidor-pagador para a saúde colocando em destaque a seguinte afirmação:

Os custos decorrentes de uma deficiência genética, de certos cancros e de outras doenças relativamente aleatórias devem ser comparticipados em 100%. O mesmo não acontece com a arteriosclerose ou os problemas auditivos da geração ‘iPod’.


Que decorre do princípio de que

se A é mais responsável por X do que B, A deve ser mais responsabilizável do que B pelo que decorre de X.


E por isso deveríamos fazer o seguinte:

Uma alternativa residiria em evoluir para um sistema misto, de contas individualizadas complementadas por um fundo comum, financiado por descontos obrigatórios. A conta receberia uma parcela do salário e ficaria cativa. Poderia ser usada para adquirir seguros privados, mas não para qualquer outra despesa ao longo da vida. A utilização do serviço público de saúde implicaria um débito nessa conta, que poderia ter um saldo temporariamente negativo e receber transferências privadas exteriores (ex: instituições de solidariedade). Ninguém seria marginalizado no acesso a cuidados básicos.


O princípio defendido é claramente um princípio de responsabilização e, por isso, baseado na culpa. Só assim se entende que doenças genéticas ou "doenças aleatórias" estejam isentas deste mecanismo de responsabilização.

No entanto não é claro como é que a alternativa proposta instituiria melhor responsabilização uma vez que "ninguém seria marginalizado no acesso a cuidados básicos", o que, só posso entender, queira dizer que a ninguém seriam negados cuidados de saúde.

Ora isto baseia-se em vários pressupostos assentes, designadamente, na noção de escolha livre e em informação perfeita sobre a etiologia das patologias.

Em primeiro lugar, é perfeitamente possível ter problemas auditivos, arteriosclerose, obesidade e uma vasta panóplia de doenças que podem ter maior incidência devido a certos comportamentos ou determinadas "escolhas" sem que o paciente tenha efectivamente incorrido nesses comportamentos ou feito essas "escolhas". E se até agora o apuramento efectivo da causa principal da doença era relativamente irrelevante para efeitos de diagnóstico, iria passar a ser fundamental para efeitos de facturação.

Depois, dispomos de informação incompleta, para não dizer fragmentária, sobre a etiologia de muitas doenças e respectivos factores de risco.

Finalmente, aquilo que parecem "escolhas livres" podem mascarar algumas predisposições genéticas. Como exemplo paradigmático temos o tabagismo. Para algumas pessoas é relativamente fácil controlar a quantidade de cigarros que fuma porque dispõem de uma enzima pouco eficiente para degradar a nicotina, o que implica que a droga mantém-se no organismo durante mais tempo evitando a necessidade de outro cigarro para manter os níveis. Outros têm uma enzima mais eficiente que degrada a nicotina em poucas horas, requerendo um consumo mais frequente. Polimorfismos equivalentes podem ser identificados no domínio do metabolismo que dão origem a comportamentos distintos a nível da nutrição.

Suponho também que é corolário deste princípio que os infectados com o HIV devem "assumir as responsabilidades" do seu comportamento se tiverem sido infectados através de contactos sexuais ou por partilha de seringas.

Não só este princípio é eticamente desprezível como é susceptível de provocar uma comunicação fraudulenta de histórias clínicas, com eventuais prejuízos para o diagnóstico e saúde dos utentes.

Deixemos a determinação da culpa para o direito penal e concentremo-nos na prestação eficiente de cuidados de saúde e em políticas de saúde pública que efectivamente diminuam os riscos e os custos.

De resto, existem formas mais inteligentes de penalizar os comportamentos e as "escolhas livres" que constituem factores de risco para certas doenças: aplicando taxas sobre tabaco, álcool e eventualmente sobre certo tipo de alimentos ou certo tipo de práticas. Assim não só continuaríamos a garantir a prestação universal de cuidados de saúde como estaríamos efectivamente a fazer profilaxia. No entanto, estou seguro que não faltarão pessoas a clamar contra esta "limitação" das "liberdades individuais". Se confiamos nos factores de risco para calcular responsabilidades a posteriori, podemos confiar nos factores de risco para financiar o sistema a anteriori.



3 comentários:

Anónimo disse...

O que aqui diz é inteligente e reduz a proposta do Tiago a um mero exercício académico, que em boa verdade não faz mal a ninguem.

Quem utiliza uma garrafa de wiskye diária para arranjar uma cirrose, tem capacidade financeira para se socorrer da saúde privada,mas quem o faz com bagaço de certeza que vai para o público.

A doença é a mesma.E tambem é a mesma falta de noção de solidariedade social que leva a estes intricados exercícios que, curiosamente, nunca equacionam a possibilidade da distribuição da riqueza ser mais justa!

Veja-se o que se passa em Portugal, onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

O SNS tem muito por onde se apoiar, desde logo, numa gestão profissional assente no mérito e nos processos de gestão consagrados!

Exemplo? Qualquer grupo empresarial sabe, que uma gestão de compras com planeamento reduz o custo ao nível da fábrica em cerca de 30%!

É dificil fazer isso no SNS?

Anónimo disse...

Excelentes críticas, caro Nuno. Quando tiver tempo, desenvolvo o tema. Respondo parcialmente às suas críticas no post do Blasfémias, que pode aceder a partir deste outro post.

http://www.atlantico-online.net/blogue/2007/05/31/contas-individualizadas/

Nuno D. Mendes disse...

É verdade que é necessário fazer face aos custos crescentes do SNS e entendo o princípio do consumidor-pagador. Mas os cuidados de saúde não são algo que as pessoas consumam por que querem, mas sim porque precisam. Os sistemas nacionais de saúde surgiram como conquista civilizacional em que se pretende garantir a todos o acesso a um sistema básico de saúde.

A introdução de contas-individualizadas faz sentido se pensarmos na prestação de cuidados de saúde como a ida do carro ao mecânico -- uma espécie de custos de manutenção. E isto provavelmente só é verdade para a terceira idade onde as complicações médicas parecem ser uma variação do mesmo tema. Então aí poderia fazer sentido manter contas individualizadas, assim como faria sentido manter contas individualizadas para as prestações de reforma.

Para os restantes casos trata-se de gestão do risco, e isto é melhor servido por um seguro de saúde. Se quiser pode pensar nas contribuições para o SNS como um seguro de saúde obrigatório. Simplesmente, no domínio dos seguros os pagamentos normalmente são proporcionais à avaliação do risco, mas no caso do SNS estão relacionados com o rendimento.

Mas também como já disse, uma avaliação correcta do risco médico levanta questões no âmbito da privacidade havendo, por isso. grandes restrições à sua exequibilidade. Neste modelo, os custos seriam distribuídos por todos o que, de resto, já acontece no SNS.