quarta-feira, julho 13, 2005

Até que a morte nos separe



O registo histórico mostra que desde sempre os seres humanos têm estabelecido binómios onde homem e mulher se unem numa relação privilegiada para proveito mútuo tendo em vista a criação de um seio familiar que possa suportar uma prole tão extensa quanto possível.

Mesmo em sociedades que sancionam a poligamia (que se traduz quase exclusivamente em poliginia) existe um binómio privilegiado.

Não é estranho, portanto, que as religiões tenham acomodado este facto incontornável na sua doutrina moral e no seu cerimonial.

As conquistas civilizacionais dos últimos séculos têm permitido, no entanto, a construção de um espaço de liberdade individual onde cada cidadão tem podido encontrar, cada vez mais, o seu próprio caminho para a felicidade e bem-estar.

Os Estados modernos têm, assim, enfrentado o desafio de garantir esta amplitude de direitos e simultaneamente garantir um sistema de valores coerente que permita identificar os tipos de comportamento compatíveis com a vida em sociedade.

Ao fazê-lo, o Estado moderno está efectivamente a chamar a si aquilo que fora até recentemente o papel das religiões organizadas. Não é estranho, portanto, verificar que as primeiras civilizações eram efectivamente teocráticas. Este novo papel do Estado, que adquire laicidade à medida que confere aos seus cidadãos amplas liberdades de culto e de consciência, vai necessariamente apropriar-se do acervo ético e moral das religiões predominantes porque estas manifestam aquelas que foram até então as regras de conduta aceites mais ou menos zelosamente por todos. Daí em diante, cada ditame moral, entretanto transformado em norma legal, deve ser submetido a um escrutínio cuidado de modo a aferir se subsiste como mera prescripção gratuita ou herança cultural dogmática ou se, pelo contrário, pretende efectivamente acautelar legítimos direitos e aspirações sociais.

Dito isto, cabe agora analisar aquilo que subsiste na nossa ordem jurídica como noção de casamento.

A união de duas pessoas, antes de todas as suas conotações religiosas ou legais, é algo eminentemente humano e anterior ao Estado e a qualquer confissão religiosa.

Ao Estado cabe apenas enquadrar aquilo que são as aspirações de cada casal, designadamente no que diz respeito à vida em comum, à partilha em vida e à sucessão na morte.

Por que razão não deverá o Estado, então, conceder os mesmos direitos às uniões entre cidadãos, mesmo que estas não encontrem paralelo naquilo que é ditado pelas religiões predominantes? Estamos a falar, claro está, do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por que razão pessoas que nascem e que manifestam desde cedo um apelo inexorável por pessoas do mesmo sexo não deverão poder gozar do mesmo tipo de sanção legal ao seu compromisso mútuo? Esta alteração da ordem legal não conseguiria mais do que ampliar os direitos e as oportunidades de busca de felicidade destes cidadãos cuja dignidade social e igualdade perante a lei é garantida virtualmente por todas as declarações de direitos modernas. Uma resistência a esta mudança só pode ser entendida no contexto de uma deficiente separação entre as Igrejas e o Estado.

Para aqueles cuja inspiração moral se confunde com uma noção de "naturalidade" pode ainda acrescentar-se que não são raros os exemplos de animais que estabelecem autênticos casais homossexuais em tudo semelhantes aos seus congéneres heterossexuais exceptuando, claro está, a capacidade reprodutiva. No entanto, experiências conduzidas por zoólogos em pinguins demonstram que quando casais homossexuais são dados a criar crias oriundas de parelhas heterossexuais tratam de cuidar delas com um empenho em tudo semelhante ao dos seus progenitores.

Se fosse necessário acrescentar mais alguma coisa, poderia dizer-se que o fenómeno da homossexualidade não é algo inédito nas sociedades humanas e que encontra várias manifestações em todas as épocas e em todas as sociedades. Não se trata, portanto, de um produto da sociedade moderna. Mas, efectivamente, só as recentes conquistas civilizacionais estão em condições de permitir a estas pessoas um exercício pleno das suas cidadanias e dos seus afectos, sob protecção legal e indo ao encontro das suas legítimas aspirações.


Por que esperamos?