terça-feira, maio 04, 2004

Revisão Constitucional



No jornal Público de hoje podemos encontrar um artigo de opinião do senhor deputado António Pinheiro Torres acerca de uma das alterações ao texto da Lei Fundamental de teor semelhante à declaração de voto que foi oportunamente apresentada durante o período de votações em sede de revisão constitucional.

A alteração a que se refere o senhor deputado diz respeito ao Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República, ao qual foi aditada a proibição de discriminação em função da orientação sexual (termo cuja autoria o senhor deputado atribui às associações de homossexuais, talvez querendo, com isso, dizer que o conceito não existe).

O senhor deputado, apesar de não ter votado contra a alteração, defende uma tese curiosa para se insurgir contra esta reforma do princípio da igualdade.

A tese apresentada tem várias facetas, todas elas apresentadas de uma forma eufemizada, e que convém analisar.

Em primeiro lugar, refere a inutilidade da alteração arguindo que a Constituição já garante abstractamente a proibição de quaisquer formas de discriminação, bem como a igualdade perante a Lei e a mesma dignidade social de todos os cidadãos.

Ora, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado a quaisquer das características enumeradas no número 2 do artigo 13º. Sendo assim, seria, talvez, preferível adoptar uma redacção em que se colocasse em evidência não as razões pelas quais não se pode ser discriminado, mas sim as razões pelas quais se deve ser discriminado, designadamente o mérito, o talento e as virtudes. Em todo o caso, não tem sido essa a tradição e o método das declarações de direitos modernas, em que se pretende dar ênfase à proibição das formas hodiernas de perseguição e discriminação nas quais se inclui, sem sombra de dúvida, a discriminação contra os homossexuais.

O senhor deputado acrescenta ainda que sendo a orientação sexual algo do foro íntimo do indivíduo deve o Estado abster-se de legislar sobre a matéria, especialmente se se tratar de normas constitucionais.

Ao fazer esta afirmação, o senhor deputado incorre num equívoco. Subjacente à visão de que um relacionamento homossexual é algo do foro íntimo está a concepção da homossexualidade como uma mera opção sexual, uma escolha ao mesmo nível do sabor preferido do preservativo ou da posição sexual favorita. Não cabe na mundividência no senhor deputado que existem pessoas que nascem de modo diferente, e para quem os afectos apelam inexoravelmente a pessoas no mesmo sexo. A dimensão emocional do ser humano dificilmente pode ser relegada exclusivamente para o foro íntimo; algo a ser praticado dentro de portas e longe da vista de todos. Todos os dias vivemos os nossos afectos e eles determinam grande parte do nosso quotidiano. Não ocorre ao senhor deputado que seja legítimo a um indivíduo aspirar a que os seus afectos não o prejudiquem na sua vida profissional, nem na sua dignidade social.

Apesar de julgar a alteração inútil, por estar já consagrada implicitamente, o senhor deputado sente necessidade de apontar o dedo às consequências da adopção do novo texto. E, se lermos a declaração de voto que apresentou no parlamento, ficamos a saber que os receios do senhor deputado são de que esta consagração de igualdade legitime, de algum modo, o casamento homossexual ou a adopção por casais homossexuais ou que os "institutos jurídicos de secular formação" fiquem sujeitos à "degradação ética de gerações", por se aprovar esta alteração cedendo a "correntes de opinião, cuja vertigem última distorce a própria natureza humana".

Mais adiante o senhor deputado vaticina eufemisticamente que, ao ceder às pressões do lobby gay (seja isso lá o que for) estaremos a abrir caminho para os mais aberrantes modos de relacionamento (a 3 ou a 4). Faltou ao senhor deputado acrescentar, como fizeram uns tantos seus companheiros de ideias nos Estados Unidos que, se fosse permitido o casamento gay, prontamente apareceriam pessoas a reivindicar a possibilidade de contrair casamento com os seus animais de estimação. Ora, fazer uma afirmação deste género é confessar uma monumental ignorância acerca da natureza humana em geral e, em particular, à natureza do comportamento sexual humano.

É precisamente por existirem pessoas como o senhor deputado António Pinheiro Torres que esta alteração se justifica e se legitima. Não se trata de cumprir as "agendas políticas de associações de homossexuais", mas sim de consagrar constitucionalmente o direito que todos os indivíduos têm de viver a plenitude dos seus afectos sem estarem sujeitos a julgamentos morais redutores que atentam contra o direito fundamental de cada um viver em dignidade.




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