Os senhores juízes desembargadores da Relação de Lisboa têm por hábito presentear-nos com acórdãos que primam pela originalidade. A candura com que decidem as questões que lhes são apresentadas leva-me a crer que os senhores juízes desembargadores vivem numa realidade que não tem nexo óbvio com aquela que todos nós outros experienciamos na vida quotidiana.
Há alguns anos, os senhores juízes decidiram que é perfeitamente razoável que um octogenário decida atravessar a pé a segunda circular em Lisboa e que essa diligência não constitui, portanto, conduta temerária. Esta observação, que fazia parte dos factos estabelecidos pelo tribunal, esteve na base da condenação de um infeliz condutor que seguia naquela via, pela faixa da direita e perfeitamente dentro dos limites de velocidade, por crime de homicídio por negligência. Foi, aparentemente, negligente por não ter assumido como provável o atravessamento daquela via dedicada a trânsito urbano rápido por um peão.
Mas mais recentemente, este mesmo tribunal estabeleceu um facto ainda mais original. O Tribunal da Relação de Lisboa, com toda a autoridade que tem enquanto última instância para apurar a matéria de facto dos casos em que é territorialmente competente, determinou que é perfeitamente plausível que uma salada crua possa ser um veículo de transmissão do Síndrome da Imunodeficiência Humana.
O caso em questão transitou do Tribunal do Trabalho e dizia respeito ao despedimento de um cozinheiro num estabelecimento hoteleiro que terá sido baseado no facto de o trabalhador ser seropositivo para o HIV. Cabia ao tribunal apurar se este facto era causa justa para por fim ao contrato de trabalho.
Tanto o Tribunal do Trabalho como a Relação de Lisboa decidiram no sentido de que um cozinheiro seropositivo para o HIV constituia um perigo para a saúde pública, uma vez que o seu suor e lágrimas, que contêm carga viral, vertidos num prato não confeccionado (p.e. uma salada), poderiam infectar um cliente incauto que tivesse alguma ferida bucal.
A Relação decidiu desta forma apesar dos pareces científicos que tinha na sua posse e que punham em evidência a implausibilidade da transmissão do vírus por esta via e, sobretudo, veiculavam a observação de que em mais de 20 anos de epidemia, depois de milhões de casos de contaminação, não havia um único caso registado de contaminação por via ambiental.
Ou seja, embora não seja possível oferecer uma estimativa para a probabilidade de um evento como a transmissão ambiental do HIV (e porque existem muito poucos eventos de probabilidade zero) o facto de ser algo nunca antes observado é, para o resto das pessoas, argumento suficiente para descartar pelo menos a noção de que estamos perante um perigo para a saúde pública.
Felizmente, os senhores juízes não parecem estar familiarizados com noções de Física modernas senão saberiam que não é impossível que toda a carga viral de um indivíduo seropositivo se desmaterialize do corpo deste para se rematerializar no corpo de um indivíduo saudável por efeito túnel. (Não é impossível, apesar de ser de uma improbabilidade tão grande que creio que o nosso universo não é velho o suficiente para já ter observado um fenómeno deste género.) Caso contrário, penso que os juízes teriam estabelecido que a única solução para o caso seria co-incinerar o indivíduo em questão, não estivéssemos a abrir portas para o início de uma nova epidemia de carácter quântico.
Mas raciocínios baseados em probabilidade não parece ser o talento mais saliente dos senhores juízes desembargadores. Senão facilmente perceberiam que se permitir que um cozinheiro seropositivo para o HIV exerça a sua profissão constitui um perigo para a saúde pública então, por maioria de razão, autorizar que qualquer indivíduo conduza um veículo automóvel é permitir um assassínio indiscriminado de cidadãos inocentes. Isto porque em cada dia que um português pega no seu carro é mais provável que uma pessoa morra do que haja contágio por HIV de cada vez que o cozinheiro seropositivo entra numa cozinha industrial.
Mas podemos continuar a lista: morrem muito mais pessoas por ano de desastres de avião, de afogamento nas praias ou mesmo de doenças raras do que pessoas que seropositivizam para o HIV por via de uma salada (que é ZERO desde há mais de 20 anos).
Dizer que os senhores juízes manifestam um excesso de zelo pelo bem-estar público é um eufemismo monumental.
É por estas e por outras que defendo um controlo democrático e popular do Poder Judicial, senão teremos sempre juízes que vivem no País das Maravilhas.
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