quarta-feira, novembro 21, 2007

O Desacordo, Vasco Graça Moura

Não resisto a reproduzir e a subscrever inteiramente este texto de Vasco Graça Moura:



Em 25.7.04, no protocolo modificativo do Acordo Ortográfico, as partes assentaram em que este "entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa". É mais uma bizarria (e uma prepotência de sinal colonialista dos mais fortes sobre os mais fracos), porque dispensa a ratificação de quatro dos Estados soberanos intervenientes (Timor ainda não o era), coisa que nunca se viu em tratados e retira ao papel toda a força e credibilidade internacionais.

O acordo é apresentado pelos signatários de 1990 como um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa. Isto é uma patetice. Não se alcança unidade nenhuma, como resulta logo do próprio e momentoso arrazoado. Por um lado, atente-se na disparidade dos critérios adoptados: enquanto o "h" inicial, que não se pronuncia, se mantém por força da etimologia, o "c" elimina-se quando é mudo em certas palavras, apesar de, nelas, decorrer igualmente da etimologia, de nem sempre ser líquido que não seja semipronunciado, e de se conservar, noutras palavras, quando é proferido nas pronúncias cultas da língua.

Na correlação entre grafia e pronúncia, os cérebros que parturejaram o acordo não compreenderam que, em Portugal e nos PALOP, o "c" que querem suprimir não é somente um testemunho da etimologia, o que, em si, já não seria pouco: é quase sempre essencial para abrir a vogal que o antecede. O mesmo se diga do "p" em idêntica situação. Se passarmos a escrever "ação" ou "adoção", não tardará que, em Portugal e nos PALOP, o "a" inicial da primeira seja pronunciado de modo a fazê-la rimar com "dação", e o "o" da segunda seja pronunciado de modo a dizer-se "adução" (salvo erro, já Óscar Lopes dava, há anos, este último exemplo quanto ao que sucederia numa pronúncia africana do português). Este problema não se põe na pronúncia brasileira, mas isso não é razão para se desfigurar criminosamente a grafia portuguesa. Na pronúncia de Portugal e dos PALOP, com tendência preocupante para o ensurdecimento das vogais não acentuadas, essas consoantes ditas mudas são funcionalmente insubstituíveis para se assegurar uma pronúncia correcta.

Por outro lado, basta pensar nas facultatividades ou grafias alternativas consagradas para toda uma série de casos. Vê-se logo que não asseguram unidade nenhuma, antes a comprometem: por exemplo, aquele mesmo "c" conserva- -se ou elimina-se facultativamente quando oscila entre a prolação e o emudecimento, assim como outras consoantes também se conservam ou eliminam facultativamente quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam também entre a prolação e o emudecimento (p. ex., amígdala/ amídala; subtil/sutil; amnistia/anistia). A consequência deste tipo de facultatividade é a de não ser a norma, mas sim a maneira de pronunciar de cada um que determina a grafia. Fica tudo à vontade do freguês... o que é uma excelsa maneira de assegurar "a unidade essencial da língua".

A fermosa unidade é ainda assegurada noutros passos extraordinários. Não resisto a transcrever este: "Levam acento agudo ou acento circunflexo as palavras proparoxítonas, reais ou aparentes, cujas vogais tónicas/tônicas grafadas e ou o estão em final de sílaba e são seguidas das consoantes nasais grafadas m ou n, conforme o seu timbre é, respetivamente, aberto ou fechado nas pronúncias cultas da língua: académico/acadêmico, anatómico/anatômico, cénico/cênico, cómodo/cômodo, fenómeno/ fenômeno, género/gênero, topónimo/topônimo; Amazónia/ Amazônia, António/Antônio, blasfémia/blasfêmia, fémea/fêmea, gémeo/gêmeo, génio/gênio, ténue/tênue". Ante esta unidade essencial assim..."preservada", eu, que me prezo de ter algum currículo, só posso dizer, quanto àquele luminoso emparelhamento "fémea/fêmea", que nunca avistei uma "fémea" nem por cá, nem por outras paragens.

No tocante aos países que mais dependem da cooperação portuguesa, vai ser bonito... No que a nós diz respeito, o acordo não é só uma enormidade cultural. É uma irresponsabilidade política, social, económica e geostratégica! É para isso que estamos na CPLP? E quem é que manda? O ministro dos Negócios Estrangeiros que anda a anunciar a rápida entrada em vigor? A ministra da Educação que não falou do assunto? A da Cultura que ao menos teve a sensatez de pedir uma moratória de dez anos?

Só mais um exemplo: se os negociadores destas trapalhadas quiserem escrever no perfeito do indicativo "andamos a fazer uma triste figura", mas não puserem acento agudo na forma verbal por ele ser facultativo, poderá ler-se a frase no presente e foge-lhes a grafia para a verdade...

segunda-feira, novembro 19, 2007

Justiça no País das Maravilhas


Os senhores juízes desembargadores da Relação de Lisboa têm por hábito presentear-nos com acórdãos que primam pela originalidade. A candura com que decidem as questões que lhes são apresentadas leva-me a crer que os senhores juízes desembargadores vivem numa realidade que não tem nexo óbvio com aquela que todos nós outros experienciamos na vida quotidiana.

Há alguns anos, os senhores juízes decidiram que é perfeitamente razoável que um octogenário decida atravessar a pé a segunda circular em Lisboa e que essa diligência não constitui, portanto, conduta temerária. Esta observação, que fazia parte dos factos estabelecidos pelo tribunal, esteve na base da condenação de um infeliz condutor que seguia naquela via, pela faixa da direita e perfeitamente dentro dos limites de velocidade, por crime de homicídio por negligência. Foi, aparentemente, negligente por não ter assumido como provável o atravessamento daquela via dedicada a trânsito urbano rápido por um peão.


Mas mais recentemente, este mesmo tribunal estabeleceu um facto ainda mais original. O Tribunal da Relação de Lisboa, com toda a autoridade que tem enquanto última instância para apurar a matéria de facto dos casos em que é territorialmente competente, determinou que é perfeitamente plausível que uma salada crua possa ser um veículo de transmissão do Síndrome da Imunodeficiência Humana.

O caso em questão transitou do Tribunal do Trabalho e dizia respeito ao despedimento de um cozinheiro num estabelecimento hoteleiro que terá sido baseado no facto de o trabalhador ser seropositivo para o HIV. Cabia ao tribunal apurar se este facto era causa justa para por fim ao contrato de trabalho.

Tanto o Tribunal do Trabalho como a Relação de Lisboa decidiram no sentido de que um cozinheiro seropositivo para o HIV constituia um perigo para a saúde pública, uma vez que o seu suor e lágrimas, que contêm carga viral, vertidos num prato não confeccionado (p.e. uma salada), poderiam infectar um cliente incauto que tivesse alguma ferida bucal.

A Relação decidiu desta forma apesar dos pareces científicos que tinha na sua posse e que punham em evidência a implausibilidade da transmissão do vírus por esta via e, sobretudo, veiculavam a observação de que em mais de 20 anos de epidemia, depois de milhões de casos de contaminação, não havia um único caso registado de contaminação por via ambiental.

Ou seja, embora não seja possível oferecer uma estimativa para a probabilidade de um evento como a transmissão ambiental do HIV (e porque existem muito poucos eventos de probabilidade zero) o facto de ser algo nunca antes observado é, para o resto das pessoas, argumento suficiente para descartar pelo menos a noção de que estamos perante um perigo para a saúde pública.

Felizmente, os senhores juízes não parecem estar familiarizados com noções de Física modernas senão saberiam que não é impossível que toda a carga viral de um indivíduo seropositivo se desmaterialize do corpo deste para se rematerializar no corpo de um indivíduo saudável por efeito túnel. (Não é impossível, apesar de ser de uma improbabilidade tão grande que creio que o nosso universo não é velho o suficiente para já ter observado um fenómeno deste género.) Caso contrário, penso que os juízes teriam estabelecido que a única solução para o caso seria co-incinerar o indivíduo em questão, não estivéssemos a abrir portas para o início de uma nova epidemia de carácter quântico.

Mas raciocínios baseados em probabilidade não parece ser o talento mais saliente dos senhores juízes desembargadores. Senão facilmente perceberiam que se permitir que um cozinheiro seropositivo para o HIV exerça a sua profissão constitui um perigo para a saúde pública então, por maioria de razão, autorizar que qualquer indivíduo conduza um veículo automóvel é permitir um assassínio indiscriminado de cidadãos inocentes. Isto porque em cada dia que um português pega no seu carro é mais provável que uma pessoa morra do que haja contágio por HIV de cada vez que o cozinheiro seropositivo entra numa cozinha industrial.

Mas podemos continuar a lista: morrem muito mais pessoas por ano de desastres de avião, de afogamento nas praias ou mesmo de doenças raras do que pessoas que seropositivizam para o HIV por via de uma salada (que é ZERO desde há mais de 20 anos).

Dizer que os senhores juízes manifestam um excesso de zelo pelo bem-estar público é um eufemismo monumental.

É por estas e por outras que defendo um controlo democrático e popular do Poder Judicial, senão teremos sempre juízes que vivem no País das Maravilhas.